Imagine que você esteja em Paris, compre em uma banca o ``Le Monde'' de hoje e leia o seguinte:
Flores para o capitão Machado. Milhares de flores dos operários cariocas foram entregues na casa do cap.Machado no dia de seu aniversário. Machado tornou-se uma figura popularíssima no ano passado quando, junto com o seu colega, decidiu instalar por conta própria uma iluminação adicional para homenagear a festa popular no Riocentro no dia 1 de maio. Infelizmente, uma lámpada potente quebrou-se em suas mãos e em conseqüência ambos foram muito machucados. No entanto, as boas intenções dos generosos militares foram bem lembradas até hoje.Imagine ainda que em seguida o autor lembre a tradição brasileira de amizade entre o exército e o povo exemplificada pelo famoso paulista, o general Antonio Sucre. Você conseguiu?
Provavelmente seus sentimentos lembrariam os que eu tive lendo na ``Folha de São Paulo'' do dia 2 de janeiro os comentários ``O drama de um povo perseguido'' sobre a Polônia, do Sr.Paulo Francis. Mais ou menos seiscentas palavras que contêm dezenas de absurdos históricos, maliciosas implicâncias a todos os poloneses (com a exceção do gen.Jaruzelski), a escolha de pontos de vista mais esquisita possível Meu Deus, que fazer? Se não fizer nada, contribuirei com a minha passividade a disseminação de estupidez no mundo. Se escrever uma carta à ``Folha'', receberei uma resposta: obrigado mas o leitor não está interessado em descrição tão detalhada de exóticos países sub-árticos. Então
Conheci o Sr.Paulo Francis através de seus artigos sobre os EUA. Lembro das previsões dele para 1980 quando dizia que Carter não podia ser reeleito sendo desprezedo pelo povo mas Reagan não seria eleito sendo primitivo demais. Recentemente, com o seu jeito particular, tratou sobre a Polônia.
Cito: `` (Jaruzelski) será um novo Rokossovski? Os analistas ignorantes aquí nem sabem quem é Rokossovski. É um general polonês que comandou as tropas soviéticas (sic) que estabeleceram o atual Estado polonês na Segunda Guerra. Estado geograficamente privilegiado. Cedeu partes leste à URSS, não etnicamente polonesas em troca de nacos ricos de Alemanha a oeste Rokossovski impôs a ordem soviética na Polônia. Mas achava que tinha criado um Estado polonês viável, pela primeira vez na história Jaruzelski sabe muito bem quem é Rokossovski, cujo fantasma permeia o corpo de oficiais poloneses, que são nacionalistas e não títeres de Moscou (Lech Walesa) talvez termine aceitando o caminho Rokossovski - Jaruzelski, que dos males é o menor.''
Quanto ao ``estado geograficamente privilegiado'', basta apenas contar uma velha piada polonesa: um dia nos classificados de um jornal de Varsóvia apareceu o pequeno anúncio: Soberania e independência pouco usadas troco por uma melhor situação geo-política. Mas o general polonês que comandou as tropas soviéticas é a piada muito melhor.
A fonte de informação mais competente sobre Konstantin Konstantínovich Rokossovski é Soviétskaia Ensiklopédia mas este produto está em falta no Ceará, queira então aceitar a nota da Enciclopaedia Britannica: 1896 - 1968, marechal da União Soviética, comandou as forças que defenderam Stalingrad e Moscou, e também dirigiu exército soviético através da Polônia durante a Segunda Guerra Mundial. Serviu como ministro de Defesa na Polônia (1949-56) e como vice-ministro de Defesa na USRR (1956-58).
(Acrescentaria que em 1945, por bombardeio e destruição total, conquistou Danzig, embora a cidade não fosse defendida por nazistas. Até hoje Gdansk não está completamente reconstruida. Você conhece ``O Tambor'' do Günter Grass?)
A Britannica, extra-delicada em questões políticas, não determina a nacionalidade do marechal. A única dica que tem algo interessante nisso é a escolha diplomática da preposição ``na'' (minister of defence in Poland, in USSR) no lugar do mais natural ``de'' (of). Antes de fornecer informações adicionais proponho o seguinte divertimento intelectual:
Desafio 1. Qual das duas situações parece mais provável?
A principal ligação de Rokossovski com a Polônia era o lugar do nascimento, Varsóvia, naquele tempo a capital de uma das províncias russas. Em Varsóvia, mas numa família russa que logo voltou à Russia. A província, que era administrada por governadores russos durante mais de um século, voltou a ser uma parte da Polônia, recriada em 1918. Exércitos russo, caminhando em 1945 pela Europa Central em direção a Berlim liberaram os países de nazistas e e instalaram regimes do seu gosto. Assim, não tinha na Polônia um governador russo mas depois da guerra civil e em plena Guerra Fria Stálin nomeou como ministro da Defesa da Polônia o marechal Rokossovski. No trabalho dele ajudavam milhares de oficiais russos espalhados em unidades do exército, ministérios e fábricas, com poderes que ultrapassavam os das autoridades polonesas. Na prática Rokossovski desempenhava o papel de governador de um país ocupado.
Você lembra-se da data 1956? Suez, Hungria? E também Polônia. O que se passou?
Tentarei contar isso do modo bastante resumido: a equipe de comunistas poloneses (propositalmente e preferencialmente escolhida entre os poloneses de origem judaica) enviada da URSS em 1944 para governar a Polônia estava absorvendo novas pessoas e por volta de 1955 tinha já duas fortes sub-equipes, a velha e a nova, lutando pela exclusividade do poder. A nova sub-equipe decidiu procurar o apoio do povo usando duas armas. De um lado procurou levantar os sentimentos anti-semitas - imagine qual poderia ser o efeito no Brasil se alguém do governo revelasse que todos os torturadores do período da ditadura eram peruanos; os sentimentos anti-peruanos estariam formados em 24 horas. Por outro lado, vazou (ou melhor dizendo: espalhou) o famoso relatório de Kruschev, tornando esse documento secreto e desconhecido entre os povos da URSS em algo acessível para crianças de escolas polonesas. A reação do povo ultrapassou todas as expectativas da sub-equipe e em outubro de 1956, depois de um banho de sangue, tremor e fúria da nação e em clima de pesadelo com um acréscimo de uma esperança, surgiu um claro dilema: ou haveria uma guerra ainda pior do que a da Hungria ou haveria reformas, a mais urgente das quais seria a saída imediata dos supervisores russos. Kruschev decidiu pela retirada dos russos da administração polonesa.
A saída de Rokossovski era uma das mais delicadas operações da diplomacia comunista Seja como for, voltou para casa com a maior medalha que a Polônia inventou e com agradecimentos especiais do governo polonês.
Não sou especializado no fantasma dele mas numerosos relatórios da Polônia indicam que de fato tem um fantasma que hoje em dia permeia o corpo dos oficiais polonêses. É o fantasma de Stálin, materializado em novo time de supervisores russos.
As vicissitudes de Rokossovski não são algo excepcional. Ha história recente registra-se freqüentemente empréstimos internacionais de personagens. Por exemplo Putrament, um empresário literário do Partido polonês que já fazia o papel de um lituano. Quando em 1940 Stálin desejou que a Lituânia o pedisse a ser incorporada à URSS, um dos três delegados lituanos era o dito Sr.P. Mais cedo a Polônia emprestou à URSS o inesquecível Felix Dzierzynski, o criador da Comissão Extraordinária (Tcheka, hoje KGB). Talvez o empréstimo de Rokossovski fosse a vingança russa.
Mais uma observação sobre a frase do Sr.Paulo Francis que a Polônia cedeu partes leste à URSS. A Polônia as cedeu assim como o Afeganistão cedeu e ainda esta cedendo à URSS as partes leste, oeste, norte e sul.
Desafio 2. Faça uma lista de 10 adjetivos que sejam ofensivos, até brutais, mas ainda aceitáveis na imprensa quotidiana. Devem ser com sentido ambíguo, meio vago ou sem sentido. Compare sua lista com o mencionado artigo. Se você acertou pelo menos 5 vocábulos, pode tornar-se um correspondente da ``Folha'' em Nova York.
O correspondente de Nova York escreveu já algumas vezes de `` semi-fascista Pilsudski, que governou (a Polônia) da década 1920 em diante, depois de trair suas origens comunistas, e que, o que é tipicamente polonês, acreditou em ser sócio de Hitler na `nova ordem'.''
Voltemos à Britannica. Quando Hitler chegou ao poder na Alemanha dia 30 de janeiro de 1933, Pilsudski mandou a Paris um emissário secreto, conde Jerzy Potocki, seu antigo aide-de-camp, para descobrir se a França, sendo aliada da Polônia desde 1921, cooperaria em uma ação militar conjunta contra a Alemanha. A Alemanha estava rearmando-se abertamente, em violação manifesta do Trato de Versailles. Os dirigentes franceses responderam negativamente. Em conseqüência Pilsudski aceitou a sugestão de Hitler firmando um tratado teuto-polonês de não-agressão por dez anos.
Não sei o que significa ``semi-fascista'' mas sei que Pilsudski traiu suas origens comunistas do mesmo modo que o general Geisel traiu suas origens da tribo Bororo.
O correspondente diz também: ``Tipicamente, o governo em exílio polonês na Inglaterra durante a Segunda Guerra queria a Silésia e o que a URSS absorveu, levando Winston Churchill e Anthony Eden à quase loucura (há o boato que Churchill mandou assassinar o general Sikorski, o mais tarado dos nacionalistas.)''
Deveras, há o boato. O leitor pode se surpreender porque assassinar - não teria sido mais fácil simplesmente recusar? Para entender isso voltaremos a 1939. A URSS invadiu um terço da Polônia e mandou entre 1,5 a 2 milhões de poloneses para milhares de campos de concentração no interior da URSS. Em 1941, quando Hitler quebrou o pacto de amizade eterna fascisto-comunista, Sikorski (chefiando o governo polonês em exílio) negociou com Stálin a formação de um exército polonês na Rússia. Graças a isto conseguiu tirar dos campos da morte algumas centenas de milhares de cidadãos poloneses. (Talvez também a Síria não goste do tarado nacionalista Sikorski porque um dos liberados era o cabo do exército polonês Menachem Begin.) Mas não foi possível encontrar 15.000 oficiais, presos na Rússia Central. Finalmente, em dezembro de 1941 Stálin revelou que quase todos eles fugiram para Manchúria (China).
Em 1943 os alemães descobriram numa floresta perto de Katyn túmulos de 5.000 daqueles supostos fugitivos. Em dois dias Stálin mudou sua versão: os oficiais trabalhavam na construção, cairam em mãos de nazistas logo no começo da guerra teuto-soviética e os nazistas exterminaram os oficiais. Sikorski pediu a formação de um comité internacional de Cruz Vermelha para investigar o crime mas mesmo antes que fosse dada a permissão alemã a conduzir investigações, Stálin quebrou as relações diplomáticas com o governo de Sikorski.
Naquele momento a unidade de toda aliança anti-nazista estava em jogo. Americanos e ingleses julgaram que a aliança valia mais do que uma abstrata verdade sobre Katyn e justamente nesse período um avião inglês com Sikorski a bordo caiu no mar.
Quem foi levado à quase loucura por exigências territoriais polonesas foi Stálin e para o acalmar e fortalecer a aliança Roosevelt e Churchill concordaram na conferência em Teerã com a versão russa da futura fronteira polonesa. Justa e segura, é claro.
Desafio 3. Usando qualquer sentido da palavra ``tarado'' mostre que Sikorski era tarado (por exemplo: para induzir Stálin às negociações sediziu a mão dele; até o fim da vida não aprendeu português, etc). A melhor vesão pode ser incluída na próxima edição da Soviétskaia Ensiklopédia.
Desafio 4. Por meio de sorteiu atribua as letras X e Y a Jorge Amado e Julio Cortázar e mostre que X é nacionalista e Y é patriota. Não economize a palavra ``tipicamente''.
A primeira frase do artigo é ``Os poloneses são um dos povos mais anti-semitas do mundo.'' (A última é ``A vida é injusta.'') É mais uma nota que permanece em quase todas as correspondências do Sr.Paulo Francis sobre a Polônia.
Sem dúvida qualquer anti-x-ismo é condenável se x é um grupo de pessoas determinado biologica ou geograficamente mas na prática diferentes anti-x-ismos provocam diferentes reações. Antifeminismo tem pouca teoria mas possui seguidores em toda parte. Anti-carequismo pode passar por um desvio inocente. Anti-americanismo ornamenta discretamente favelas e palácios. Anti-negrismo (alias, racismo) é oficialmente condenado mas contamina sociedades de vários países. E o anti-semitismo é tão repugnante que mesmo o PLO que esforça-se muito para acabar com os judeus, distancia-se dele. A razão? A lembrança do Holocausto.
A Polônia conviveu com judeus no decorrer da toda sua história de mil anos. Uma parte deles fechava-se em suas comunidades, uma outra parte contribuia com todos os aspectos da cultura espiritual e material da Polônia. Pelo destino e pela política dos czares, na Polônia de 1918 um quinto da população era judia. No Holocausto os alemães exterminaram quase 4 milhões deles. Após a guerra começaram circular na Alemanha assim como entre os judeus dos EUA as teorias da culpa polonesa e do apoio moral aos assassinos. Começou-se evitar mencionar a nacionalidade dos que ocupavam a Polônia e instituiram e dirigiam os campos de concentração, entrou a moda de chamá-los de ``nazistas''. No lugar de simples constatação que as tropas alemãs de SS (Schutzstaffel) dirigiram os campos colocava-se as insinuações sobre os motivos de colocar os campos de extermínio justamente na Polônia. Qual era o motivo desse estranho enfoque? Além de procurar não antagonizar a Alemanha Ocidental - o novo aliado dos EUA na Guerra Fria - isso purificava as almas dos ricos judeus americanos que nada fizeram durante a guerra para salvar as massas dos seu pobres compatriotas da Europa Central.
Não pretendo desculpar nação qualquer de seus crimes e erros - e como cada nação que em certo período constituia uma potência, a Polônia teve os seus momentos que não a enaltecem - mas digo que as simpatias e antipatias pessoais não podem constituir uma base de julgamento de uma nação.
Mas como entender um assunto tão amplo e ramificado? É simples. Quer saber se a sociedade brasileira é racista? Pergunte aos milhares dos negros, pergunte aos historiadores negros. A pergunta é sobre o anti-semitismo polones? Existe uma obra em (que me lembre) 15 volumes que contém tudo o que é possível dizer sobre judeus, que avalia e julga cada nação, cada país, tomando em conta o comportamento com respeito aos judeus. Apesar de várias provas de acontecimentos anti-semitas e de atrocidades de ``pogroms'' (note que a palavra não provém de polonês) a obra refere-se à Polônia com amizade e respeito. Nada sequer remotamente parecido às acusações do Sr.Paulo Francis. Queira conferir, veja o vocábulo ``Poland'' na Enciclopaedia Judaica.
Mais uma volta ao artigo: `` esse povo sofrido, obtuso e loucamente corajoso ''.
Sofrido? Ouço isso desde 3 anos. Meus primeiros dias no Brasil passei com uma família, gente boa e simpática; me alojavam e conversando ensinavam a língua. Naquela fase as conversas não podiam ser sofisticadas. A minha origem polonesa passava esquecida, eles só quiseram saber das minhas experiências da França. ``Os franceses comem caramujos? As francesas são mais bonitas do que as brasileiras?'' Chegou o conclave, entrou o João Paulo II e tudo mudou. ``Qual é o prato típico da Polônia? Na Polônia tem carros nacionais? Sabemos tudo sobre o seu povo sofrido, a gente leu no jornal, viu na televisão '' Pensei: ainda bem que não têm ucranianos ou lituanos por perto. Acho que eles têm outra visão sobre os povos sofridos e sobre os opressores.
O sentimentalismo jornalístico aproxima uma tese ao leitor por canais não racionais mas as inevitáveis falsidades e simplificações tornam o caminho perigoso, pois constrói um mundo de caramelo que não sobrevive uma chµva. O povo polonês não é mais sofrido de vários outros povos. Ate o século XVIII tinha - em relação ao mundo contemporâneo - uma sorte razoavelmente boa. Agora está sofrendo mas suponho que seja preferível sofrer hoje na Polônia do que na URSS, Kampuchea ou Irã.
Desafio 5. Escreva um artigo que comece com ``Os salvadorenhos são um dos povos mais racistas do mundo.'' e termine com ``A vida é injusta;'' dentro do artigo aconselhe os guerrilheiros a aceitarem os caminhos do governo. Tente publicar o resultado na ``Folha de SP''.
`` (Lech Walesa) não dá um passo sem cunsultar a Virgem Maria.''
Graças a Deus. A Solidariedade podia armar-se (por exemplo com facas de cozinha) ou achar um forte protetor. Com sua adesão pública à Igreja o sindicato ficou fortalecido.
``Walesa pode ter certeza que a Polônia não voltará a antes de agosto de 1980.''
Certo. Um outro professor de Walesa, o general Jaruzelski, disse a mesma coisa e até tomou umas medidas para pular direto a 1984.
``Uma Polônia independente, o que a maioria das pessoas interpreta como Polônia capitalista e ligada aos EUA, é totalmente impossível.''
Gozada é esta ``maioria das pessoas''. De que nacionalidade e profissão? Mas o resto - mais uma vez - está certo. Justamente isso dizia em cem línguas há um ano a Rádio Moscou. Junto com a profecia sinistra: ``totalmente impossível.''
Isso me lembra que em sua aparição na Rede Globo no começo da crise o Sr.Paulo Francis disse que a introdução da lei marcial foi provocada pelas propostas da Solidariedade no seu congresso, de saída da Polônia do Pacto de Varsóvia. Isto é chamado de troca internacional de informações. Um correspondente da TASS fornece o precioso ítem ao Sr.Paulo Francis e em seguida cita-o como fonte da mesma notícia no noticiário da TASS.
(``A lei marcial'' em polonês é ``stan wyjatkowy''. Jaruzelski introduziu ``stan wojenny'', isto é ``o estado de guerra''.)
Sobre as ligações: a Polônia não-capitalista está bem ligada aos EUA por meio da dívida de 3 bilhões de dólares, compras de trigo, doações da UNRA (aliás, USRA), Pepsi, Coca e centenas de filmes de «far west».
``Mas que Solidariedade foi bonito, foi. Apesar de anticomunista ''
O Homem valoriza muito o que é dele, especialmente aquilo que pôs na cabeça. Já que aprendeu alguma coisa sobre canto gregoriano, vai concientizar todo mundo como isto é bom, até uns anjos encontrados por acaso. Mas os anjos as vezes cansam e dizem que prefereriam qualquer coisa polifônica, como madrigal. O Homem fica bravo e declara que o canto gregoriano é muito bom e o anjo é burro e caido e que quase todos nós vamos um dia cantar o canto gregoriano.
Pode ser, mas estou contente de por enquanto eu mesmo poder escolher a minha música. Na terminologia científica marxista isto é chamado de apodrecido individualismo burguês. Pois é. Seja chamado como for, aconselho a cada um, antes de julgar as completas legiões de anjos, perguntá-los porque eles não gostam da monofonia em coro.
Mas os anjos desculpe, os operários poloneses são anticomunistas? Uma curiosidade histórica: na Polônia não há na linguagem comum nem na conciência social os ``comunistas''. O nome do partido, artigos em jornais e discursos públicos evitam a palavra ``comunismo'', a não ser que trate-se da situação ideal do futuro. Os membros do partido são ``partidários'' (``partyjny'', usado como substantivo), o sistema político é ``socialismo'' ou ``democracia popular'' e uma declaração ``sou um comunista'' soa teatralmente para o ouvido polonês. A razão é que em 1936 Stálin dissolveu o partido comunista polonês e anunciou que aquela organização não existiria mais. Este fato aumenta a bagunça terminológica ao redor do comunismo ou socialismo mas como estou conversando com os brasileiros, ficarei com os nomes daqui. Então, duvido que operário polonês ou Solidariedade fosse anticomunista. Uma simples razão: dos 36 milhões de poloneses que vivem lá, 27 milhões têm mais de 16 anos de idade; desses mais da metade nasceu ou entrou como bebê na Polônia já comunizada. Sendo assim, com raras exceções eles não conhecem e não imaginam em detalhes o funcionamento de outros sistemas sociais. Bem, foi dos operários que ouvi esta piada: ``o comunismo não foi inventado por cientistas. Os cientistas no começo experimentariam com coelhos''. Pois não , contam piadas, maldizem às ``sanguessugas vermelhos'' e jogam na loteria para ficarem milionários mas exigem apenas a correção - e não abolição - do sistema.
Finalmente: se a acusação de serem anticomunistas fosse correta, isto jogaria luz sobre os poloneses ou sobre o comunismo?
Mas dialeticamente falando, Sr.Paulo Francis pode ter razão, pois exigir uma correção de um fenômeno incorrigível significa desejar que ele se vá.
Percebe-se certa inclinação emocional também em outros meios de comunicação. O noticiário da BBC que geralmente chama as greves inglesas de ``industrial action'' tratou as greves polonesas de ``industrial chaos''. Qual é a diferença entre ação e caos? Resposta: 27 bilhões de dólares. Só ao Brasil a Polônia deve mais de 1,5 bilhões, por volta de 13 dólares para cada brasileiro; já isso poderia deixar os brasileiros zangados. Mas com quem? Com os banqueiros que emprestaram, o governo polonês que levou ou com os operários poloneses que não participaram na operação?
Mas nem tudo é ``money, money''. Porque ``anticomunista'' é tido aqui como uma ofensa? Porque ditos progressistas e humanistas zangam-se com os operários poloneses? Porque a livre imprensa liberal do Ocidente repete com vontade as invenções da KGB?
Mais importante dos aspectos econômicos é o fundo psicológico. Se você achar pulgas na cabeça de X, ele não fica zangado com as pulgas mas com você. Cubanos que se lançam no mar para fugir do Fidel Castro, poloneses que rezam embora o partido disse que isto é um preconceito, todos eles são culpados da destruição da imagem do paraíso. ``O idealismo do comunismo primitivo'', disse o correspondente de Nova York. Eu diria ``a primitiva idealização do comunismo''. Aquele paraíso foi escolhido por espírito de contradição e por preguiça intelectual. Era fajuto mas existia. E agora não há mais. Roubaram o paraíso.
Submeto-lhe uma parafrase da expressão de Kurt Vonnegut: ``Tendemos a realizar um paraíso assim como o imaginamos. Por isso devemos imaginar com cuidado o paraíso''.
E agora, deixando do lado a ``Folha' e a BBC, usando apenas o cérebro: quem joga e o que joga aqui?
Posso lhe oferecer uma anedota sobre Jaruzelski que (creio eu) nunca chegou ao conhecimento de jornalistas. Quando ele assumiu o ministério de Defesa em 1968, em uma das suas primeiras ordens mandou todos os oficiais, até os generais, eliminar barrigas. Mandou-os correr e fazer ginástica e prometeu mandar embora em poucos meses todos os oficiais que continuariam gordos.
Quando ouvi dia 13 de dezembro na BBC que além dos dirigentes da Solidariedade ele mandou prender 6 ex-dirigentes do partido, pensei: ``que tipo vingativo. Aproveita a oportunidade para acertar as contas com os seus coleguinhas.'' Mas depois de alguns dias admiti que errei. O bloco militar-policial, dirigido por Jaruzelski, fez guerra contra os operários e intelectuais da Solidariedade mas também contra o partido, burro e corrupto.
Contra o povo talvez possam ganhar. Contra a corrupção e a ineficiência do comunismo vão perder. Isso tudo já aconteceu, na URSS, e não adiantou coisa alguma.
Nos anos 60, na República Soviética de Azerbaidjão, o chefe da KGB Gaidar Aliev olhava com desgosto e revolta à reinante corrupção e indolência, desordem e crime. Em 1969 apresentou a Brejnev (também desesperado com a situação escandalosa) um relatório implicando quase todos os altos funcionários do Azerbaidjão. Brejnev o encarregou de salvar a província. Em 3 anos Aliev substituiu quase 2000 altos funcionários por seus confiados do exército e da polícia, puros, severos e idealistas. Já em 1973 tudo estava como antigamente, a corrupção e estupidez venceram os heróicos camaradas da KGB e do Exércido Vermelho. Dizia-se que ``a diferença entre os velhos e os novos dirigentes é a de que os novos querem a mesma coisa mas imediatamente''.
O mesmo Sr.Paulo Francis diz na mesma ``Folha'' que um certo jornal norte-americano mantem ``a aspiração de lutar até o último polonês''. Duvido que esta seja a aspiração dos EUA. Não vejo o que eles ganhariam se de noite para o dia a Polônia ganhasse a independência da URSS. (É mais fácil fechar contratos com um corrupto ministro do que com centenas de empresários.) Mas vejo facilmente o que perderiam. Começariam as exigências de ajuda econômica e militar, desacordos diplomáticos e protestos em frente da embaixada norte-americana.
Então como explicar a presença dos EUA na atual crise da Polônia?
Acho que o jogo americano vale muito mais dos 3 bilhões da dívida polonesa. Qualquer acordo sobre desarmamento lhes trará incomparavelmente mais. Para levar os russos às negociações é imprescindível convencê-los que uma nova onda de armamento americano é possível, que o Congresso e Senado aprovarão os orçamentos e a opinião pública não os torpedeará. A crise polonesa é ideal para criar um desejado espírito armamentista, tanto nos meios de comunicação quanto entre os senadores e seus eleitores. Mas há uma vantagem a mais. Fingindo a indignação (pois isto é que vale aquele pseudo-boicote econômico) atrasam seu passo à mesa de negociações e forçam os russos a chegarem primeiros. Quem liga mais, tem de fazer maiores concessões. E cada concessão vale a economia de bilhões de dólares.
E os russos, o que eles querem? Não , a URSS não é previsível. Mas com certeza Brejnev pode repetir a frase da Rainha Elisabeth: ``nós não estamos divertidos.'' Mais gasolina para tanques de guerra, menos gasolina para Mercedes-Benz
Não sei o que será. Há muitos fatores em jogo. A decência comum de alguns políticos, a existência dos americanos de ascendência polonesa. O desespero de um operário faminto e a agitação em outros países do bloco comunista. Bom clima ou mal clima. Preços da OPEP e o Papa polonês. Sei apenas que em geral violência gera violência e que dados falsos levam a outros dados falsos.
O distanciamento entre os conceitos daquele jornalista e os rumos da realidade dos últimos 20 anos pode parecer cômico mas Temo que haja uma relação entre a qualidade da imprensa brasileira do período e as lastimáveis posições dos intelectuais desta nação. Não estou sugerindo que lendo em 1982 textos menos estúpidos do que textos da ``Folha de SP'' os intelectuais de anos 90 estariam capazes de escolher o seu ídolo político mais decente e inteligente - as coisas na vida social não andam na linha tão reta e simples. Sugiro apenas que no Brasil de hoje a confusão mental da esquerda está ligada com baixíssima qualidade dos seus gurus de anos 70 e 80.