Brincando de adultos

Quando há anos assisti o Rambo fiquei surpreso vendo uma das últimas cenas. No fundo uma cidade destruida, no primeiro plano Sylvester Stallone com rosto sofrido de Sylvester Stallone pronunciando um dos famosos one-liners de Hollywood: “ele começou primeiro”.

Mal podia acreditar que para um enorme público algo tão cretino serviria como justificativa. Mas serviu, sim, na saída sentia-se uma empatia com o herói que não teve outra escolha.

Mais tarde me dei conta que esta babaquice estica bem longe fora do cinema. Uma reportagem na TV, um cidadão xingou outro, o outro tirou arma e matou o xingante. Depois anuncia com orgulho à reporter: “claro que tive de matar; não tenho sangue de barata!”

Freqüentemente enxergava uma incerteza de adolescente por baixo das fanfarronadas do Fernandinho I. Não eram as decaídas na molecagem, era um eterno playboy amolecado (ou moleque emplayboyado). Mas as bravatas dele tiveram o lado sinistro, pois instituiram um estilo de governar, facilitaram as bravatas do ACM e Fernandinho II. O clássico da molecagem era a dita – não dita frase “esqueçam tudo que escrevi”. Os adultos sabem que o passado pode-se corrigir, não esquecer.

A molecagem não é uma invenção brasileira mas nesta terra plantando tudo se colhe duas vezes mais. Está virando difícil passar os dias com a concentração de molecagem.

Uma estrela do PSDB, o ministro do País, anuncia que o Tribunal Supremo pode dizer o que quiser, mas ele não paga. Nihil novi, este filme já passou em Alagoas, chamava-se O Fernandinho contra a Assembléia do Mal. Fernandinho fez escola.

Não paga mas (conforme a onda de boatos) manda o dinheiro às instituições, deixando aos reitores a decisão se pagam ou não. E como para esses coitadinhos cansados de perigosíssimos vôos à Brasília “não fazer” é mais fácil que “fazer”, eles dão uma de moleques e não pagam, tanto faz se o cidadão trabalha ou está em greve.

Sou um daqueles que tempo todo estão trabalhando normalmente. Não sou “fura-greve” pois não pertenço à APUFSC. Desliguei-me da APUFSC há anos, justamente para não ter obrigação de entrar em cada uma das canoas furadas que esta organização sistematicamente aluga. Não precisei apoiar o governo comunista da Albânia, não mandei uma caneta para Fidel, apoio alegremente a quebra de estabilidade e retirada de progressão automática dos professores. Pago por isso um certo preço – pois os sindicatos indiscutivelmente asseguram várias facilidades para os seus associados, mas prefiro falta das facilidades do desgosto intelectual.

O fato que estou trabalhando não deve ser confundido por ninguém com aceitação das posições do Ministério. Acho que ambos os lados fogem da verdade e evitam uma discussão séria sobre a educação nacional. Além disso as táticas grevistas completamente ridículas comprovam para mim que a classe de professores não prepara memoriais, artigos ou discussões públicas pois em sua maioria tem só uma coisa para dizer: “quero um salário maior”. Ninguém sugere que um salário maior estaria ligado com a qualidade melhor do ensino ou da pesquisa.

Bem, estou trabalhando – e espero receber o meu salário. Mas o reitor Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, que já foi estudante do curso de Direito - lá fez um curso de especialização, que é um dos professores daquele Departamento (embora sem mestrado, chegou à posição de Professor Adjunto IV), que já teve um cargo na Procuradoria da UFSC – o reitor Rodolfo não sabe que a obrigação do empregador é pagar aos empregados que desempenham normalmente as suas tarefas (no meu caso: os cursos na graduação, as reuniões administrativas, as pesquisas próprias na área de matemática).

Havia uma coisa para ser feita – uma solução humilhante, tão humilhante que vários dos meus colegar não quiseram aceitar – enviar ao reitor um requerimento confirmando que estou desempenhando todas as minhas obrigações trabalhistas e peço que o meu salário seja depositado na minha conta. Gostaria de ter uma situação financeira que me livrasse da necessidade de levar ao Departamento de Recursos Humanos esse requerimento - considero isso absurdo; não sou um pedinte. O salário é meu. Se a administração quer instituir alguma espécie de relógio-ponto, está ótimo, posso só ganhar as horas extra desse modo, pois a minha semana de trabalho invariavelmente ultrapassa 60 horas. Mas esta de “me pague, por favor” é o cúmulo do ridículo. Parece um gentil príncipe árabe que joga um saquinho com ouro ao fiel súdito. mas – o que a gente não faz para os filhos – entreguei essa porcaria. E nada de resposta. Voltei a insistir. Nada. Abordei o reitor pessoalmente. No começo balbuciou algo sobre “todos que sofrem”. Quando lembrei que não estamos na Palestina três mil anos atrás e que no Brasil não há uma responsabilidade coletiva, murmurou algumas promessas vagas e não fez coisa alguma.

(Falando sobre a responsabilidade coletiva. Se o Sr.Paulo Renato dirigisse não MEC mas o Ministério de Justiça, consideraria certo metralhar uma rua por completo só porque em uma casa ficou escondido um bandido?)

Os motivos da atitude do reitor não devem originar em extrema incompetência. Não se deve suspeitar a incompetência no caso de pessoa que já foi o vice-ministro (sei, formalmente esse título chama-se no Brasil Secretário Executivo do MEC); parece que a atitude do reitor Rodolfo, publicamente manifestada desde o início da greve, a atitude “quero – não posso – façam isso por mim”, levou este político ao entendimento com APUFSC que traz os resultados práticos desse gênero.

Vários grevistas têm uma sólida confusão na cabeça e acham que seria injusto se os fora da greve recebessem salário. Eles também jogam em ambos os times - se for necessário confirmar por escrito a sua posição grevista, a maioria deles voltaria de imediato ao trabalho. Por este motivo APUFSC nunca faz votações sobre greve por escrito com voto obrigatório de todos os associados.

Não sei se os grevistas devem receber o salário – parece que ninguém pediu o julgamento da legalidade da greve – e ouço dizer que há um tremendo rolo legal nessa questão. Mas a situação legal dos trabalhadores que não entraram em greve está claríssima. Se eu fosse uma empregada doméstica do reitor Rodolfo, a retenção ilegal do meu salário resultaria em minha vitória na Justiça de Trabalho, líquida, certa e rápida. Mas – como conferi na Delegacia do Ministério de Trabalho – sendo um funcionário em Regime Jurídico Único de trabalho, as minhas proteções são ilusórias, e a tentativa de receber de volta o que me foi retido iria pela justiça comum em ritmo conhecido (além disso: ou perco 10% para o banco ou pago 10% para um advogado).

Há aqui mais um agravante. Vou mover um processo contra o cidadão Rodolfo, encontrarei na Justiça o time da Procuradoria da UFSC defendendo o reitor Rodolfo. Parece que este caminho não me levaria longe.

O que eu posso fazer? Bem, respirar fundo, tentar manter-me adulto e não fazer correndo o que tenho enorme vontade de fazer. Já existem bastante moleques nos arredores. Busco empréstimos, tenho na fila (curtíssima) das possibilidades a venda emergencial de carro com perda de 20% ou mais – e aceito tranqüilamente que no final de carreira, sendo um especialista valorizado, por causa de uma jogada moleque de um político estou descendo da classe média baixa à classe baixa alta. Afinal, não nasci rico, posso morrer pobre. Até aqui tudo bem. Mas quando chegar o momento que em jogo estiver a comida, roupa e escola dos meus filhos, bem, aí as coisas vão mudar.

Voltando ao início do meu artigo. Não sou Stallone. Não fumo. E um filme comigo teria poucas cenas bonitas.

Voltando à metade do artigo. Mantenho me calmo e pouco me importa se alguém achar que tenho sangue de inseto ou de mamífero.

Chegando ao fim do artigo. O que deve ser feito? É simples, o prezado Senhor Reitor vai cumprir o dever dele e pagar o meu salário. Se no futuro evitar as repetições do mesmo erro, com prazer vou votar nele para qualquer cargo administrativo. Quanto às perdas que sofri, os juros bancários etcetera, no momento de calma vou fazer os cálculos e vou apresentar a ele a conta por via particular.

Se alguém estiver surpreso com a minha disposição de ser o eleitor do reitor Rodolfo, explico: já fui uma vez. Ele estava prometendo cuidar da Internet na Universidade. (Bem, cuidou da compra de centenas de computadores mas não da manutenção deles.) Parece que se desencantou com a Internet pois quando houve um bloqueio de NPD não chamou a polícia federal para defender o património público. Mas – como falou o general Clausewitz – só a vaca não muda de opiniões.

E porque votaria nele de novo? E qual seria a alternativa – que ele volta ao Departamento de Direito e transmite aos estudantes a sua peculiar noção sobre a lei? Pelo amor de Deus…