Quando um pizzaiolo coloca na mesa uma pizza de 3 metros e anuncia:
comam de graça mas só até a metade, sempre aparecem os inconformados
que questionam: porque só a metade?, uma metade de 3 é mais
de 2?, e o que vai fazer se eu comer a metade mais um quinto?
A melhor manifestação da regra é a sazonal e inevitável discussão
na Internet sobre o que Knuth quis dizer quando escreveu
\errmessage{Este manual está com direitos autoriais restritos
e não deve ser submetido ao programa TeX}\repeat será que
no fundo quis algo justamente contrário? Ou talvez brincou? E como
burlar essa mensagem de erro?
Elaboram-se frequentemente umas teorias ad hoc sobre o direito
natural aos 2m de pizza, sobre Robin Hood e outras asneiras.
Em geral os contraventores querem o melhor dos dois mundos: a segurança
na transmissão eletrônica dos próprios dados e o direito de por no
seu prato tudo o que surgir na rede.
Quais são as atitudes mais comuns dos autores com respeito ao material
que colocam em suas páginas? E quais eram as minhas reações? Já que não
sei tirar uma média de mais e menos infinito, vejo necessidade de comentar
alguns tipos de posições que tendem a se repetir.
- Se não encontrava indicação alguma de autor(es) esclarecendo
posição legal sobre seus
materiais comunicava-me com o dono da página. Na falta de resposta tomava
uma decisão pensando no interesse do leitor. Em um caso a resposta me
obrigou a retirar um texto. Em dezenas de outros casos tive pleno apoio dos
autores, com entendimento que não se trata de uma iniciativa comercial.
As vezes a situação estava tão nítida (por exemplo: os materiais estão no
arXiv) que por falta de tempo eu nem entrava
em contato com os autores. No outro extremo, tendo situação nítida
mas de proibição completa, procurava inicialmente
obter dos autores uma permissão para ter um mirror da página
no server do nosso Departamento. Em nenhum desses casos recebi
uma resposta
- Sinta-se convidado para usar esse material de qualquer maneira
que você considere adequada. [...] Caso você usar estas notas em
cursos ou seminários próprios, apreciaria enormemente ser informado
das suas reações. A minha gratidão é enorme e gostaria de achar
uns momentos livres para informar os autores que representam esta
posição: levei isso para frente, procurei deixar intocável o lado visível
do seu esforço. Vou incentivar os (conhecidos por mim) usuários do
CD-ROM para que uma vez e outra transmitam o seu obrigado àqueles
autores sei como é importante uma comunicação dos leitores
para quem escreve.
- Seria muito chato se publicasse, ou usasse para lucrar, uns ou
todos desses materiais. No mínimo teria um acesso de raiva e nunca
mais conversaria com você. Leve com calma, se lucrar significa
dinheiro, então esta brincadeira me custou (em pagamentos para companhias
telefônicas) acima de US$500 nesse ano e meio de trabalho. Mas
o lucro intelectual (meu) e educacional (dos meus estudantes)
é inegável. Pois é, paguei para (usando o neologismo de
T.Kotarbinski)
me desestupidar um pouco.
- Cópias inalteradas de arquivos com texto de artigo podem ser
livremente distribuidas para o uso pessoal ou em cursos. A minha
atitude de respeito aos autores inclui a preservação do aspecto gráfico
e das interconexões originais entre os textos mas isso pode forçar
umas modificações no código HTML do texto (para que os indicadores
refiram-se à posição correta de textos e imagens, seja no disco, seja
na Rede).
- Não redistribua esta página ou o seu conteúdo para usos particulares
ou profissionais já que isso em geral desencoraja o autor levando a não
desenvolvê-la mais. Mas a página ficou sem modificações durante
um período infinito (medindo na escala da Internet). Então talvez encontrando
o seu conteúdo os leitores expressarão o seu apreço e apoio?
- Você pode imprimir uma cópia desses materiais mas você não pode
guardar cópias desses arquivos no seu disco. É uma maneira (espero
que involuntária) de tornar todas as pessoas transgressores. Enviando
o comando (digitado ou clicado) de seguir o link ativo um mecanismo
de estocagem de textos e imagens no meu computador.
- Você pode guardar só uma cópia deste artigo no seu computador.
E se uma está em /home/eu/.netscape/cache/ e outra em /tmp? A outra
não é uma xerox da primeira.
- As páginas não podem ser copiadas ou reproduzidas [...] Se
você quer possuir uma cópia, favor, considere uma compra de livro
em capa dura ou/e CD-ROM [...] Alguns materiais fazem parte de
coleções-mercadorias. Trazendo-os para o meu computador contrario
o mandamento do autor mas considero a minha posição defensável.
- Isso foi colocado para incentivar a compra? Bem, é minha
a decisão de comer o biscoitinho ainda no supermercado ou de levá-lo
para casa para a minha família.
- Cuidadosamente preservo todo o caminho
para que o leitor possa encomendar a mercadoria. Bem, se a publicidade
for repetida em 800 textos então deixo-a só em lugares estratégicos;
trata-se de uma informação e não de uma lavagem cerebral, certo?
- Os nossos estudantes poderiam entrar na Rede para ler cada dos artigos
a vontade? Poderiam, sim, tendo excesso de tempo e excesso de dinheiro.
A amarga piada sobre World-Wide Wait (a demora mundial)
é uma clínica descrição do fenômeno e o custo das ligações por
modem é indecente. Com a globalização planejou-se o custo das
tarifas no nível dos Estados Unidos (ou maior) sem planejar coisa alguma
sobre os salários. Já a barreira da língua é um grave problema para
alguns dos nossos estudantes (a grafia de nomes dos clássicos, referências
tradicionais aos eventos), dizer que podem acessar os materiais na Rede
é uma pura hipocrisia.
- As vezes tive que usar meios não completamente retilíneos
para confeccionar uma cópia fiel de algum material mas em um único
caso tive uma reação hostil com a ameaça de bloqueio da toda subrede
do meu Departamento. (Uma tentativa de conversa com o dono da página
foi completamente ignorada.) Ironicamente, a página (super-citada,
reverenciada e referencial) logo
sumiu do ar.
Recentemente vi os materiais dela, meio bagunçados, em endereços pouco
divulgados, o que sugere que o autor reconsiderou a vida e também passou
a apreciar a clandestinidade.
Lembro de um curso semestral de Enciclopédia de Lei com um percurso
impressionante pelas teorias de origens e origens de teorias de Lei.
Considero isso muito excitante e promissor para o futuro mas hoje em dia
em vez de desenvolver mais uma (conveniente) teoria da lei prefiro
falar sobre os juristas, pois na vida social uma religião nunca vale
mais do que a classe de seus sacerdotes. (Sim, é óbvio que a regra vale
também para a matemática a decadência social no uso de raciocínio
matemático é um reflexo das doenças profissionais da maioria dos
matemáticos: tendite de cálculos, rigoris chatis e cegueira aplicacional.)
Tenho tanta raiva e bilis quanto qualquer outro louco desse mundo
e acho importante registrar para o uso de psiquiatras a minha sessão
de acusações paranóicas. Faço isso como um educador adulto e ponderado,
pois (como cada louco bem desenvolvido) acredito que é o mundo e não
eu quem está completamente desequilibrado e quero impedir que os educados
caiam em uma aquiescência, complacência e um conformismo precoce.
Matemáticos e juristas são primos muito próximos, se bem que
os primeiros são frequentemente pobres e os outros não raramente
ricos. Mas o treinamento que recebem é muito parecido durante
longo tempo a lógica foi estudada só por eles (e os filósofos, que são
também primos, mas indecisos quanto a serem ricos ou theo-ricos).
Os exemplos de grandes juristas-matemáticos (Fermat, Sylvester, Cayley)
são famosos mas raros e não destacam o fato que em ambas as profissões
a essência do trabalho consiste na busca de falhas minúsculas
e imperceptíveis para os leigos. Só que uma vez identificado um buraco
em dados ou raciocínios, para um matemático isto é uma tremenda frustração
e para um jurista uma enorme soma.
Há tantas coisas que poderiam ser ditas sobre esse tema que uma seleção
é necessária. Então menciono só que juristas têm para nos uma boa
dose de desdém (na minha classe profissional só as mulheres esboçam
alguma elegância. Metade dos homens apresenta-se como se estivesse
voltando da excursão no pântano, a outra metade como se estivesse
partindo para um churrasco) e uma outra boa dose de inveja (pois sabem
que um dia nós teremos bem melhores chances de escapar do inferno). E com
freqüência têm uma profunda gratidão ao seu(sua) professor(a) da
matemática, pois foi fugindo dessa criatura que acabaram entrando em uma
das faculdades de direito.
Para dizer outras coisas, o estilo do Livro Azul faz-se necessário.
Então, começo assim como o Mestre Zochtchenko ensinou:
não tenho críticas gerais sobre juristas, acho-os uma maravilha, mas.
Estou me lembrando de alguns fatos isolados.
- O primeiro advogado a gente nunca esquece. O meu estava me ajudando
nos meus primeiros dias em Brasília na homologação (nostryfikacja -
a gente diria em polonês) de alguns documentos. Em certo momento sentiu-se
falta de um carimbo de Cônsul brasileiro em um documento polonês
e o Dr.Vale (assim quis ser chamado esse conselheiro legal)
sugeriu que eu devia resolver isso o mais rápido possível. Expliquei que
para chegar ao Cônsul o documento passaria por uma fileira de funcionários
das repartições polonesas e se tratando de um refugiado político
o êxito era impossível. Pois é, posso lhe ajudar ofereceu-se o Dr.V.
Perguntei se ele tinha os contatos lá. Não diz Dr.V. mas eu dou pulo
de Fusca até a Esplanada das Embaixadas. Vendo o meu estado de estupor
tirou uma caneta e esboçou um mapa de Brasília destacando ministérios,
embaixadas e o seu escritório. Após alguns minutos entendi: ele acreditava
que cada embaixada possuía um quartinho anexo onde um funcionário
brasileiro, o tal de cônsul, carimbava os documentos que saíam do prédio
principal.
- Anos depois voltei a acreditar que o diploma universitário do Dr.V.
não era comprado no Mercado de Pulgas mas que ele terminou um curso. Pois é.
Havia (no Brasil) casos seguindo esse modelo: aberto concurso para 50 vagas
de juiz, apresentavam-se 5000 candidatos, dos quais apenas 15 são aprovados
e os relatos de jornais sugeriam que a maioria dos reprovados teve problemas
com domínio da sua língua pátria.
- Sobrando ainda 35 vagas usavam-se os métodos alternativos. No passado uma
das técnicas interessantes consistia em criação de juízes-classistas.
Para comprovar que havia uma justiça social oferecia-se aos sindicatos
o direito de indicar uma pessoa que se tornava o tal juiz na Justiça de
Trabalho. O mecanismo ativou muito a vida sindical do País; um dos mais
famosos era o Sindicato dos Criadores de Cavalos-Árabes.
- O orgulho da ciência brasileira o IMPA do Rio desapareceu um belo
dia pois reorganizando as autarquias o legislador-mor, um presidente da
República por sinal, apagou sem querer a sua existência legal. Afinal,
o que é aquela instituição de um prédio na imensidão da oitava economia
do mundo.
- Uma multinacional (brasileira) de Santa Catarina especializada
em bichos com asas enviou um
representante para o Parlamento (falando tecnicamente: o povo elegeu
na sua região um deputado federal) com uma missão lingüística. Após
um período de atividades (de dar e receber os favores) ele teve a sua
emenda parlamentar colocada na pauta, votada e aprovada. Graças ao seu
esforço o Brasil é o primeiro país do mundo onde os perus e chesters
(o filho da galinha com urubu) carregam sob as penas uma bunda de porco.
A nova lei determinou que as indústrias podem comercializar como
presunto umas carnes provenientes dessas aves.
A invenção não é plenamente nova, no passado alguns ricos batizavam de
peixe os pedaços bovinos para poder consumí-los em quartas- e
sextas-feiras. Mas isso foi algo diferente: lá um rico enganava o seu
Deus, aqui o Parlamento engana o seu Povo.
- Para homenagear a lei que extinguiu a pena de prisão por dívidas,
estudantes de Direito de uma faculdade tradicional e renomada
marcam o aniversário de promulgação dela invadindo os restaurantes
e comendo até dizer chega e depois recusando-se a pagar. Dizem que
trata-se de uma tradição. Muitos juristas famosos e respeitados,
chamados a opinar em programas de TV, subscreveram a posição dos estudantes.
Há uma opinião unânime que falta aqui qualquer semelhança com um roubo
de comida, afinal nessas turmas ninguém passa fome.
- O seu mapa mostra a localidade de Brusque? Pois é, a dos juristas
da Cidade de Nova York mostra. Vieram para Brusque em massa e com
apoio da polícia local. Drogas? Trabalho infantil na produção de
sapatos exportados para USA? Governantes-ladrões? Não, nada disso, apenas
o sorriso meio triste do Pato Donald.
Em Brusque várias indústrias têxteis vendem camisetas infantis com
Mickey Mouse, Pato Donald e outros representantes da cultura do primeiro
mundo, mas sem bênção dos sacerdotes da Lei. Em conseqüência os bichinhos
são vendidos em roupinhas por um ou dois dólares por peça e têm um
sorriso amarelo. Para devolver o riso livre à bicharada elevando o preço
das camisetas e blusinhas ao nível de 10 dólares, foram presos vários
comerciantes e fechadas várias fabriquetas. A operação consta em anais
como o maior sucesso logístico norte-americano desde a invasão da ilha
de Granada.
- Já que estou falando sobre os sucessos norte-americanos: adoro
de discordar do Noam Chomsky, mas
neste
caso, quando ele fala sobre Kosovo e a lei internacional, não sei como
fazer isso.
- Para cortar o besteirol (pois já cansei de escrever tanto): vou criar
o início de atitude respeitosa para com a lei internacional quando
for estabelecida e respeitada alguma lei universal que descreva
os direitos e as proteções de mulheres como no mínimo iguais aos dos
homens. Afinal, havia um risco de 50% de eu aparecer em forma de uma
mulher e não acho justo apenas ficar alegre que escapei naquela vez.
Creio que cada homem deve refletir sobre o valor do mundo que permite
a exploração, submissão e maltrato aplicada a uma metade da população.
Então: faça o que quiser pois lei é uma piada? Acho que estou falando
de algo diferente. Se você ler a última parte do meu monólogo, verá que
ela é uma confissão de fé de alguém convicto que ética é inseparável
dos sucessos profissionais.
Estou falando de um aspecto mais triste do nosso mundo.
Quando eu era novo me mostraram dez Leis e disseram que elas expressavam
as regras morais e vieram do além. Depois vi os belos desejos vestidos
em formulações legais; supostamente eram as Leis que emanavam do Povo.
Hoje em dia as leis carregam muitos algarismos mas enfrento dificuldade
querendo descobrir as suas conexões com qualquer ética, o Além ou Povos. As
leis derramam dos prefeitos e presidentes, dos policiais e diretores, dos
encontros de vereadores e das conferências de juristas de multinacionais.
A identificação de indicações morais com as descrições de técnicas de venda
de cosméticos é tão avançada que pode-se esperar qualquer momento a chegada
do software Pequeno Legislador.