I. A Lei e Os Juristas

Quando um pizzaiolo coloca na mesa uma pizza de 3 metros e anuncia: “comam de graça mas só até a metade”, sempre aparecem os inconformados que questionam: “porque só a metade?”, “uma metade de 3 é mais de 2?”, “e o que vai fazer se eu comer a metade mais um quinto?” A melhor manifestação da regra é a sazonal e inevitável discussão na Internet sobre “o que Knuth quis dizer quando escreveu \errmessage{Este manual está com direitos autoriais restritos e não deve ser submetido ao programa TeX}\repeat” – será que no fundo quis algo justamente contrário? Ou talvez brincou? E como burlar essa mensagem de erro?

Elaboram-se frequentemente umas teorias ad hoc sobre o direito natural aos 2m de pizza, sobre Robin Hood e outras asneiras. Em geral os contraventores querem o melhor dos dois mundos: a segurança na transmissão eletrônica dos próprios dados e o direito de por no seu prato tudo o que surgir na rede.

Quais são as atitudes mais comuns dos autores com respeito ao material que colocam em suas páginas? E quais eram as minhas reações? Já que não sei tirar uma média de mais e menos infinito, vejo necessidade de comentar alguns tipos de posições que tendem a se repetir.

Lembro de um curso semestral de “Enciclopédia de Lei” com um percurso impressionante pelas teorias de origens e origens de teorias de Lei. Considero isso muito excitante e promissor para o futuro mas hoje em dia em vez de desenvolver mais uma (conveniente) teoria da lei prefiro falar sobre os juristas, pois na vida social uma religião nunca vale mais do que a classe de seus sacerdotes. (Sim, é óbvio que a regra vale também para a matemática – a decadência social no uso de raciocínio matemático é um reflexo das doenças profissionais da maioria dos matemáticos: tendite de cálculos, rigoris chatis e cegueira aplicacional.)

Tenho tanta raiva e bilis quanto qualquer outro louco desse mundo e acho importante registrar para o uso de psiquiatras a minha sessão de acusações paranóicas. Faço isso como um educador adulto e ponderado, pois (como cada louco bem desenvolvido) acredito que é o mundo e não eu quem está completamente desequilibrado – e quero impedir que os educados caiam em uma aquiescência, complacência e um conformismo precoce.

Matemáticos e juristas são primos muito próximos, se bem que os primeiros são frequentemente pobres e os outros não raramente ricos. Mas o treinamento que recebem é muito parecido – durante longo tempo a lógica foi estudada só por eles (e os filósofos, que são também primos, mas indecisos quanto a serem ricos ou theo-ricos). Os exemplos de grandes juristas-matemáticos (Fermat, Sylvester, Cayley) são famosos mas raros e não destacam o fato que em ambas as profissões a essência do trabalho consiste na busca de falhas minúsculas e imperceptíveis para os leigos. Só que uma vez identificado um buraco em dados ou raciocínios, para um matemático isto é uma tremenda frustração e para um jurista uma enorme soma.

Há tantas coisas que poderiam ser ditas sobre esse tema que uma seleção é necessária. Então menciono só que juristas têm para nos uma boa dose de desdém (na minha classe profissional só as mulheres esboçam alguma elegância. Metade dos homens apresenta-se como se estivesse voltando da excursão no pântano, a outra metade como se estivesse partindo para um churrasco) e uma outra boa dose de inveja (pois sabem que um dia nós teremos bem melhores chances de escapar do inferno). E com freqüência têm uma profunda gratidão ao seu(sua) professor(a) da matemática, pois foi fugindo dessa criatura que acabaram entrando em uma das faculdades de direito.

Para dizer outras coisas, o estilo do “Livro Azul” faz-se necessário. Então, começo assim como o Mestre Zochtchenko ensinou: não tenho críticas gerais sobre juristas, acho-os uma maravilha, mas. Estou me lembrando de alguns fatos isolados.

Então: faça o que quiser pois lei é uma piada? Acho que estou falando de algo diferente. Se você ler a última parte do meu monólogo, verá que ela é uma confissão de fé de alguém convicto que ética é inseparável dos sucessos profissionais.
Estou falando de um aspecto mais triste do nosso mundo. Quando eu era novo me mostraram dez Leis e disseram que elas expressavam as regras morais e vieram do além. Depois vi os belos desejos vestidos em formulações legais; supostamente eram as Leis que emanavam do Povo. Hoje em dia as leis carregam muitos algarismos mas enfrento dificuldade querendo descobrir as suas conexões com qualquer ética, o Além ou Povos. As leis derramam dos prefeitos e presidentes, dos policiais e diretores, dos encontros de vereadores e das conferências de juristas de multinacionais. A identificação de indicações morais com as descrições de técnicas de venda de cosméticos é tão avançada que pode-se esperar qualquer momento a chegada do software “Pequeno Legislador”.