III. CV pré-matemático: como sobreviver no século XX

Uma vez disse para um escrivão francês que não era muito exata a anotação que nasci na Polônia pois (no momento daquela conversa) o lugar pertencia à União Soviética. “Então você é um russo?” interessou-se o funcionário. Nunca mais (na França ou no Brasil) entrei em minúcias geográficas de uma aldeia na Lituânia com hospital vizinho já na Bielo-Rússia; preferi evitar uma discussão sobre o verdadeiro lugar do meu nascimento.
Nasci de fato no Protetorado Oriental da Reich Milenar da Nação Alemã. Como eslavo estaria destinado para se tornar escravo dos verdadeiros arianos e começaria trabalhar na derrubada de árvores ou em uma fábrica de munição na idade de 12 anos morrendo antes de atingir 20 – mas para a minha sorte o Reich Milenar acabou-se dois anos após o meu nascimento.

Quer dizer: a infância sortuda mas não necessariamente feliz. Quando tinha alguns meses, na casa onde a minha família hospedava-se naquela aldeia apareceram os Lutadores da Libertação. A nacionalidade deles não importa, importa que estavam atrás do ouro. Não gostaram do fato de eu ser o único homem presente naquele momento e quiseram saber onde estava escondido o metal. Induzido pelo raciocínio dedutivo um dos Lutadores enfiou o braço por baixo do meu corpo vasculhando a caixa que desempenhava o papel do berço. Logo encontrou o único tipo de ouro que podia ser colocado lá naquelas circunstâncias. Enfurecido, me pegou pela perna e, com o braço esticado, girou-me planejando terminar a minha trajetória na parede. Mas os seus colegas lhe suplicaram que mudasse a minha órbita alegando que matar os bebês dava azar. Em consequência jamais gostei de carrossel. Além disso acho justo notar o seguinte:

(2) As vezes superstições funcionam em favor de um matemático.

Com o fim da guerra veio o início do Grande Turismo. Há quem pense que o turismo em massa foi inventado na década de 60 do século XX em sociedades afluentes, mas já em anos 20, 30 e 40 os comunistas promoviam essa atividade levando ucranianos para a tundra da Sibéria, poloneses para o deserto do Casaquistão e judeus para o túmulo. Em vez de voltar para a casa em Vilnius – diferentemente do resto da Lituânia, esta cidade abrigava só 2% de lituanos, o resto eram poloneses e judeus – a minha mãe teve de começar a viagem para lugar nenhum.

Isso era o processo de transferência do Estado polonês algumas centenas de quilômetros para o Oeste. A obra foi feita em pouco tempo, conforme os planos, com a retirada de 7 milhões de alemães da Prússia para a Saxônia e a Baviera, todos os poloneses descontentes para a Sibéria e a anexação das sobras à União Soviética. Os planos que menciono foram traçados em Teerã por Churchill e Roosevelt. Ninguém os chamou de serial killers pois um destes causa a morte de algumas dezenas de pessoas – e não de milhões. A sua decisão que trouxe uma catástrofe mundial começou com o empurrão da Polônia para oeste e prosseguir com uma mágica lingüística. A partir de um rio que corta a Europa ao meio, tudo que ficava de um lado seria chamado de Europa Oriental e seria dado de presente para Stálin, o antigo parceiro de Hitler. Conversando com Stálin os líderes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha acharam-no amável, chamaram-no carinhosamente de Joe e decidiram presenteá-lo um pouco. O fato que um quarto da Alemanha ficaria com os russos era natural – quem causou a morte de 20 milhões de habitantes da União Soviética podia contar com a vingança. (Uma parte dela foi o estupro em massa nos anos 1944-46 das mulheres alemãs. Hoje com umas técnicas genético-estatísticas seria possível comparar o segmento da população da Alemanha nascido nesse período com os mais velhos e mais novos para avaliar até que grau fez-se modificação no pool genêtico da tribo germânica. Aparentemente ninguém tem interesse nesses levantamentos científicos sobre a composição racial – as prioridades daquele país mudaram muito.) Mas é difícil de compreender porque não foram oferecidos para Stálin o Pais de Gales e Novo México, porque tinham de ser Bulgária e Estônia junto com Hungria e Látvia, junto com Lituânia e Polônia, junto com Romênia e Tchecoslováquia.

Eu pessoalmente não tinha motivos para reclamar, pelo menos estava viajando rumo oeste, diferentemente de alguns milhões de ucranianos que estavam sendo deportados da Alemanha (“repatriados”, se dizia na época, como se a Península de Kola e Kamtchatka fizessem parte da pátria ucraniana). As deportações dessas massas para os campos de concentração – assim como a ida para lá de todo o exército vitorioso do marechal Zhukov, integrando-o na Sibéria com os alemães, prisioneiros de guerra – tudo isso passou desapercebido pelo “Ocidente”. O mundo democrático estava muito ocupado em construir sua riqueza que iria se revelar vinte anos mais tarde. Tudo se encaixa. Os franceses não quiseram lutar pela Alsácia em 1936 nem morrer por Danzig em 1939, porque iriam arriscar algo por Tallin em 1944, Budapest em 1956 ou Praga em 1968?

Porque o destino me mandou viver no país chamado Polônia e não República Soviética Socialista da Polônia com a língua russa na escola e em repartições? Devo isso aos meus antepassados; fazendo durante 150 anos várias revoltas tidas pelos Homens do Estado como suicidas e absurdas, convenceram o Camarada Stálin de reconsiderar a generosa disposição de incorporar esse país à União Soviética. Com certeza duas grandes lutas de Varsóvia, as de 1920 e de 1944, deram o acabamento final às análises dele.

Acho a língua russa belíssima e até hoje consigo citar de cor algumas linhas de Puchkin, Maiakovski e Erenburg mas foi bom que no meu dia-a-dia usava a outra língua, mais feia, nasal e complicada, que traz muito trabalho aos poetas para juntar coisa com coisa. Alguns deles viraram-se bastante bem, como comprova o caso de Czeslaw Milosz ou Wislawa Szymborska.

Nesses deslocamentos de alguns meses que finalmente me levaram a Szczecin houve um episódio que não deixarei de relatar. As viagens de trem eram desconfortáveis (os vagões de carga com bancos colocados ao longo das paredes, com as bagagens no meio) e perigosas. O mundo estava cheio de Lutadores da Libertação que costumavam parar os trens com minas por baixo de dormentes. Para proteção, na frente da locomotiva colocavam-se duas plataformas abertas mas isso pouco ajudou na explosão que sofreu um trem que me levava: um trilho de alguns metros arrancado dos dormentes voou com trajetória parabólica subindo entre a plataforma e a locomotiva e descendo para o meio do meu vagão. Perfurou o teto, enfiou-se no chão e lentamente caiu ao longo do vagão rasgando o teto mas sem machucar qualquer pessoa. A mãe e a avô contavam que todo mundo caiu de joelhos na minha frente rezando para mim, pois ninguém duvidava – já que lá eu era a única criança pequena – que era eu quem Deus queria preservar vivo. Sem dúvida, pode-se tirar daqui uma conclusão:

(3) Para um matemático algumas curvas são mais vantajosas do que as outras.

Tudo que se seguiu depois foi uma vida fácil, simples e pacata. Uma dúzia de graves doenças infantis, dois assaltos (com o mesmo modelo: três com a faca contra mim), o assédio da polícia secreta, uns momentos da minha burrice ao volante – tudo isso passou sem maiores seqüelas. Comparando-me com uns bilhões de moradores do nosso planeta posso me considerar um permanente ganhador de bilhetes premiados.

Voltando à infância: a mais nítida lembrança daquele período é da cheirosa kasza (arroz polonês, dizem aqui) que caiu no chão quando os meus dedos de criança de quase três anos não seguraram o prato. Durante mais de 50 anos pensei que a força da lembrança indicava a falta de boa comida no período mas lendo o diário da minha falecida mãe descobri que naquela cidade e naquele dia a família reencontrou o meu pai que passou dois anos trabalhando em uma mina perto de Moscou. Não era um mineiro. Era um jornalista; a experiência saiu barato, apenas a tuberculose. Se os russos o pegassem antes da chegada dos alemães, estaria morto como os de Katyn ou os de Magadan. (Roman Duda me falou que viu nos arquivos de Londres os documentos do exército russo, capturado pelos guerrilheiros da Armia Krajowa, que descreviam pelas profissões as pessoas a serem presas. A décima-terceira categoria consistia de filatelistas. Lógico. Além de saber ler ainda tinham os contatos pelo mundo afora.) Mas o posterior seqüestro da inteligentsia polonesa, após a fuga dos alemães, teve outro caráter e graças a isso dez anos mais tarde eu podia receber de presente do pai os livros Nos traços de Pitágoras e Lilavati que devem me ter contaminado com alguns germes matemáticos já nessa idade.

(Naqueles livros de Szczepan Jelenski importante era não somente o que constava mas também o que não constava. Em lugar nenhum havia sugestões que Lilavati vencia os desafios pressentindo os futuros ensinamentos de Marx, Engels, Lênin e Stálin. Sim, naquele período se precisava ter muita coragem para não dedicar uma obra ao Generalissimus Camarada Stálin.)

A próxima lembrança talvez não seja ligada com a matemática mas com a loucura do mundo. Tenho uns 5 anos e ganho um pacote com maravilhoso leite condensado, uma delícia de figo seco e uma fantástica caixa de lápis de cor. É o Natal. É a UNRRA – The United Nations Relief and Rehabilitation Administration. (Até hoje tenho queda pelo leite condensado, figo seco e lápis de cor.) O milagre não se repetiu em outros Natais – veio a Guerra Fria e pensei que UNRRA tivesse acabado. Mas uns 25 anos mais tarde em um acampamento do grupo Makusyny descobri que nos mantimentos passados para nós pelo exército estava escrito “UNRRA”. Claro, tudo se encaixava. Os militares do Ocidente precisavam do inimigo para enrolar as suas sociedades, forneciam então a comida para o exército do inimigo para que ele pudesse economizar verbas para produção de armamentos.

(4) Uma caixa de lápis de cor ou um livro com histórias matemáticas – qual é melhor presente para uma criança? Se a criança é pequena, dê ambos. Se a criança passou de 30 anos, compre para ela o livro À la recherche du maths perdu.

O caminho para a escola em Szczecin levava por um quilômetro e meio de ruínas. De fato, os dois prédios da escola eram os únicos edifícios preservados no terreno de alguns quilômetros quadrados. Havia lá várias bombas e um de meus colegas da escola teve o azar de descobrir que qualquer bomba pode explodir um dia. Umas paisagens menos sombrias podiam-se apreciar durante freqüentes viagens da escola para os campos – juntávamos na lavoura de batata a sua praga, o escaravelho da batateira que – como os jornais e os livros noticiavam – era jogado na nossa terra socialista de pára-quedas por imperialistas norte-americanos. Houve adultos que sonhavam que uma noite os americanos jogariam de pára-quedas o pó de sono e na hora de acordar a gente não estaria mais em poder dos russos – mas nessa parte da Europa sempre se superestimava a tecnologia norte-americana.

Além do mar de ruinas havia em Szczecin o Palácio de Juventude onde participei de em grupo de fotografia (uma da dezena de possíveis atividades) e fazia empolgantes experiências no grupo da química. Uma delas, com o fósforo vermelho, conduzida em casa, quase acabou em tragédia, mas de novo o mal parou em “quase”. Sim, o Palácio estava aberto a qualquer jovem e tudo era de graça. “Divertimentos pagos” soaria como uma heresia.

Quando mudei para Zielona Góra (identificada pelo MacTutor como “Zielona”, a terra do Pitiscus), fui cotado como um natural candidato para o estudo da química e participava de algumas Olimpíadas de Química. O rumo da minha educação mudou quando a escola organizou uma excursão para uma fábrica de celulose. Dez quilômetros antes sabíamos que estávamos perto. A química imediatamente desceu uns degraus em minhas preferências. Note que

(5) A matemática não fede.

Zielona Góra era bem menor que Szczecin – talvez 60 mil habitantes – e se isso fosse uma cidade na França ou no Brasil, o tamanho garantiria a inexistência de qualquer vida cultural. Mas nessa parte da Europa “o tamanho não é documento” e havia um bom teatro, uns concertos da principiante sinfônica – e havia Helena e Wladyslaw Korcz. Ela me ensinava história na escola e ele na casa dele. Além da livre docência em história ele tinha alguns anos do laguer soviético. Ele não contou muito sobre esta experiência – tinha sido terrível demais para se lembrar dos detalhes – mas o pouco que falou foi suficiente. E me emprestava todos os volumes de Bertrand Russell publicados nos anos 30.

Depois apareceu na escola um outro historiador, Zbigniew Czarnuch. Hoje ele é uma lenda e um manual da educação mas naquele tempo era um professor de história no segundo grau. Uma função ingrata para um ser honesto e pensante.

Uma das minhas maiores frustrações intelectuais aconteceu na aula dele. Ele me obrigou a explicar aos colegas o que significava “o movimento chartista”. Eu não tinha a menor idéia e comecei a improvisar inventando uma colorida biografia de um tal de Chart, o líder popular. Não sabia bem em qual período assentá-lo mas Czarnuch acenava que estava me seguindo então fui levando. Só uns minutos depois ele deu o golpe de misericórdia informando que se tratava de Carta Magna.

Uma das suas técnicas educacionais – plenamente aplicável em matemática - consistia em pedir que o aluno descrevesse um fenômeno com pouquíssimas palavras-chaves. Infelizmente, uma aplicação disso às pessoas que pensam que “matemática = calculações” traz efeitos cômicos.

Passei matura (a prova final do 2º grau) sem saber distinguir seno do cotangente. Não me interessava a distinção. Passei pois pareceria estranho se ficassem derrubados dois dos destacados alunos – mas o outro disse em uma entrevista divulgada em uma revista que para ele matura era apenas um papelzinho no caminho à Escola Superior de Filmes. Os meus pecados ficaram relativamente pequenos e passei. (Basicamente era a minha especialidade de falar coisas que deixavam pessoas furiosas mas quando Wojciech Gielzynski veio de Varsóvia para entrevistar todos os colegas da minha classe, o destino me mandou uma gripe providencial e nunca vou saber com que eu poderia sair naquele momento.)

Tive que escolher algum curso universitário pois preferi perder 5 anos em uma universidade do que 3 no exército. (O meu passado, curto mas já marcado na ficha da policia secreta, garantiria a incorporação a uma unidade com serviço de 36 em vez de 24 meses.) Trabalhei como um recepcionista de hotel ruminando o que escolher – e um dia achei em uma das bibliotecas públicas a tradução de O que é matemática? de Courant e Robbins. Li e já sabia o que escolher. O exemplo de Sioma que voltava de Wroclaw sempre contente da vida sugeria que dava para sobreviver esse curso.

Czarnuch ficou visivelmente decepcionado ouvindo que eu pretendia estudar matemática. Quis me dirigir à sociologia ou alguma outra coisa útil. Vendo que eu estava decidido consolava-se dando-me as dicas: “é, a matemática tem muitas aplicações na sociologia”.

Resumindo: era pobre mas todos eram pobres. Tive várias opções para ampliar meus horizontes – e todos as tiveram. Até no rádio havia peças de teatro de impecável valor artístico. Hoje faço parte da “classe média” e ganho bem mais do que um balconista mas me faltam recursos para oferecer aos meus filhos uma participação naqueles clubes, grupos e acampamentos que na Polônia eram acessíveis aos filhos de qualquer balconista. Mas eles têm algo que eu não tive: 24 horas por dia de Cartoon Network. E também os programas “infantis” de alguns robôs comerciais que – para despistar o público – estão disfarçados de atraentes loiras e levam simpáticos nomes femininos.