IV. Wroclaw

Nesta coletânea de uns 200 autores incluo 5 pessoas de Wroclaw. Seriam os critérios provincianos?

É uma pergunta retórica. Tenho certeza que não . Eu mesmo não conto, sobram só quatro. O único deles que está em Wroclaw tem publicações com A.Odlyzko (portanto o seu número de Erdos é 2), o trabalho deles foi citado em Scientific American então inclusão de sua página a qualquer coleção é justificada. O valor dos três outros, que trabalham em conhecidas universidades de Estados Unidos, também é facilmente estabelecido – e em todos estes casos sou eu quem está grato a eles por me permitirem a reprodução de seus materiais aqui.

De fato, tem muito mais para ser dito sobre este tópico – e justamente pretendo entrar nisso.

Se você descobre que – digamos – Berkeley possui um centro científico super-poderoso, não há nada interessante nessa constatação. Afinal, a Califórnia como um país independente ainda seria uma das quinze maiores potências econômicas do mundo e poderia comprar para as suas instituições uma parcela significativa de cientístas do planeta. Mas Wroclaw nunca fez parte da Califórnia.

Fui para Wroclaw porque decidi estudar matemática. Decidi estudar matemática por causa de três convicções falhas e uma correta. As falhas eram: (a) ela iria exigir de mim pouco tempo de estudo, (b) nela se podia trabalhar sozinho, (c) ela não tinha muita ligação com o mundo louco fora dela. A correta: os resultados matemáticos independem da posição geográfica ou sistema político.

Ouvi com freqüência em Zielona Góra e nos tempos de estudante a frase A Escola Matemática de Wroclaw e gostava de ter tão nobre cobertura mas nunca dava muito valor às frases desse gênero, vendo-as como um bairrismo. Comecei a suspeitar que eu era severo demais quando já no exterior vi aos poucos que havia em Wroclaw algo que sempre depois iria me fazer falta. Mesmo quando tive prazer e honra de visitar os excelentes institutos da França ou Alemanha, podia compará-los sem complexos com os da Polônia. Os pesquisadores podiam ser mais geniais, os resultados mais impressionantes, mas o ambiente, a atmosfera era diferente. O que significava Wroclaw?

Bem, vou começar pela matemática. Até hoje brilham lá Czeslaw Ryll-Nardzewski e Wladyslaw Narkiewicz. Estive nos seminários de Wladyslaw Slebodzinski (não, S.Lie não inventou a derivada de Slebodzinski, foi o contrário). Sioma Fajtlowicz ainda teve aulas com Hugo Steinhaus, eu só o cumprimentava em corredores. O seminário de Jan Mycielski e Hugo Steinhaus parecia uma página do livro “Quem é quem em lógica”. Jerzy Slupecki, Edward Marczewski, Kazimierz Urbanik, Andrzej Krzywicki, Andrzej Hulanicki e Stanislaw Hartman participavam em todos os seminários. As vezes podia-se assistir às aulas de Halina Lopuszanska e Tadeusz Huskowski ou seminários de Berthold Lysik ou Adam Rybarski. Falava-se muito sobre Stefan Drobot, Andrzej (Andrew) Lelek e Stanislaw Swierczkowski que partiram para os USA ou Austrália. Abraham Goetz dava quatro semestres de análise seguindo a enciclopédia de Fichtenholz (em poucos anos iria para Notre Dame). Bronislaw Knaster ensinava a geometria projetiva. E apareciam os novos personagens. Alguns ficaram (Leszek Pacholski, Boguslaw Hajduk), alguns acabaram indo para exterior (Wojbor Woyczynski, Edward Neuman, Andrzej Derdzinski, Jerzy Kocik, Jerzy Tomasik). Será que não devo falar sobre Jan Lopuszanski, Jerzy Lukierski, Jan Rzewuski, Jan Mozrzymas – só porque eram os físicos? Mas eles participavam do nosso cotidiano: cursos, seminários, orientação de teses…

Até os historiadores de movimentos políticos têm motivos para estudar o ambiente da matemática de Wroclaw. Quando forma-se uma espécie de “ministério de educação” da Solidarnosc, no mínimo três matemáticos (sobre os outros ouvi falar, falta me dados concretos) têm a atuação destacada: Roman Duda, Boleslaw Gleichgewicht, Jan Waszkiewicz.

Não tenho capacidade de fazer um denso relato histórico. Vou dar apenas umas pinceladas de lembranças que podem transmitir algo sobre o ambiente. Muitas dessas informações podem estar na memória de pessoas, sem jamais terem sido registradas por escrito. Mas talvez não sejam “informações”; os dados técnicos podem ser achados em google, eu me refiro ao clima moral e intelectual.

Há muito mais detalhes para narrar, então vou sair um pouco do Instituto (de fato, dois institutos, das duas Universidades, mas integrados e inseparáveis) e lançar um olhar para Wroclaw. Naquele mundo havia vários lugares fascinantes que merecem um longo relato: Leningrad, Praga, Budapest, Novosibirsk, Cracóvia – mas eu conheci bem só um deles.

Uma vez o jornal suiço Neue Zürcher Zeitung fez uma reportagem sobre Wroclaw sugerindo que o único milagre econômico da Europa pós-guerra não era o reerguimento de seu potencial industrial (com o Plano Marshall isso foi uma consequência dos investimentos, milagre nenhum) mas o ressuscitamento pelos poloneses de Wroclaw. O argumento era: uma enorme, moderna mas completamente destruida cidade passa para uma outra nação que teve só poucas cidades desse tipo antes da guerra. Maioria dos especialistas da vida das cidades foi exterminada seja por alemães, seja por russos; os poucos sobreviventes foram necessários em Varsóvia, Cracóvia, Poznan… Acreditava-se que logo a cidade (com o seu clima malárico) iria ficar coberta por mato e esquecida. Surpreendentemente, logo se ergueu e com as massas de trabalhadores da região de Poznan e as elites intelectuais que fugiram de Lvov, a cidade voltou ao mapa e com fortíssimo impacto.

Jan Waszkiewicz, mais um personagem inesquecível do milieu matemático, teve uma interpretação simples. Hoje provavelmente mediria as palavras, como deve um político de destaque mas naquele momento colocava isso assim: “e a diferença entre as mentalidades nacionais e a disposição dos poloneses a uma improvisação, confundida frequentemente com a anarquia. Se dissesse a um capitão alemão de infantaria: «vai ser amanhã promovido a major de artilharia», a resposta seria «obrigado, não, não tenho competência para isso». Mas se propusesse para um açougueiro polonês: «amanhã vai ser diretor de um hospital psiquiátrico», a resposta seria: «e quanto vou ganhar?»”.

Naquele período a cidade abrigava uns 600 mil habitantes no enorme terreno que continuava a apresentar as feridas da guerra, do Festung Breslau. Um estudante gastava mais de duas horas por dia em ônibus e bondes pois as aulas estavam dispersar – ensinava-se onde tinha um anfiteatro livre, não importava a que universidade a sala pertencia. Quantas universidades? Contando com as Escolas Superiores de Música e de Artes Plásticas – 7. Mais Academia Militar. Mais um Curso Superior de Pedagogia (Studium Nauczycielskie). Mais duas Faculdades de Teologia (no país comunista? Sim.) Nessa cidade de indústria pesada e diversificada havia uma massa de talvez 80 mil ou mais estudantes e professores universitários. Então havia uma massa crítica suficiente para Ópera, Orquestra Filarmônica, três excelentes teatros profissionais, um ainda melhor estudantil, uns vinte cinemas (sim, com censura. Liberation of Mr.Jones entrava, S.Kubrick não), alguns cinemas estudantis (“Clube Cinematográfico de Discussão”, lá entrava tudo), o “experimental” Teatro de 13 Cadeiras de Jerzy Grotowski, o Teatro de Pantomima de Henryk Tomaszewski. Todo ano o bem representado festival Jazz sobre o Rio Odra – e todo ano a nata mundial de teatros amadores Festival de Festivais de Teatros Estudantis. Quase todas as semanas algum recital de consagrados músicos na universitária sala barroca Aula Leopoldina. Exposições de arte abstrata? Museus? Em igrejas o coral com Haydn ou uma composição de Penderecki? A vontade.

Por isso desembarcando um dia em Paris não fiquei esmagado pela riqueza das opções. Era uma mudança de quantidade, não de tipo ou de qualidade.

Poucos professores tinham carros. Em geral chegavam a esse luxo depois de um convite a Stony Brook ou Baton Rouge; ficavam lá um ano quase sem comer, vivendo como se continuassem a viver na Polônia. Com as economias de um ano do salário “ocidental” podiam na volta comprar um carro, um apartamento, um pingo de conforto para a sua família (por exemplo: uma máquina de lavar roupa).

Como estudantes, costumávamos encontrar os nosso Mestres em bondes superlotados e em filas de supermercado (“hoje chegou queijo”), mas também em filas para ingressos para sinfônica, recital ou uma visita do Teatro Velho de Cracóvia. Eram pobres. Eram cultos. Eram modelos de ética.

A Polônia dos anos 70 é uma prova que o salário universitário de mendigo não impede a pesquisa em um nível impressionante. O Brasil dos anos 70 é uma prova que o salário universitário de príncipe não garante o ensino em um nível decente.

Oh, quase esqueci de mencionar mais um lugar de encontros naturais com nossos Mestres. A livraria russa no centro da cidade.

Os russos eram os opressores? Sim, alguns. Os outros eram oprimidos. A escravidão que havia nos kolkhoz não teve seu análogo na Polônia. Mas ao mesmo tempo a Rússia era pátria de 4 milhões de jogadores de xadrez registrados. A nação de trovadores e poetas. E uma superpotência em ciências. Você quer falar sobre Lysenko? Não esqueci da figura mas penso que na escala de educação nacional pesou menos que os criacionistas e fundamentalistas norte-americanos.

Playboy não chegava ao povo soviético, tampouco Newsweek. Mas todas as novidades científicas eram imediatamente traduzidas, munidas de inteligentes comentários e suplementos – e impressas em tiragens que poderiam dar vertigens a alguém não acostumado aos grandes números. Um texto universitário podia passar de um milhão de cópias. As monografias de áreas muito especializadas ganhavam apenas 10 ou 20 mil cópias. E alguns milhares chegavam à Polônia. Pelo preço de banana.

Acabo de conferir na Rede. Posso (??) adquirir “Curso de Aritmética” de Serre por US$50. Mais o frete. Tenho a cópia russa sem capa dura, de 1972. Custou 0,51 rublo. O equivalente, no período, a uma passagem de ônibus.

Aparecia algo interessante da Springer Verlag? Paciência. Em um ano qualquer estudante poderia comprar isso – papel sem graça, as letras russas. Sem problema. Uma biblioteca particular de 300 ou 500 volumes não era rara entre os estudantes.

Copyright? Claro. O autor podia aparecer em Moscou e retirar o seu dinheiro no banco russo e em moeda russa. O seu editor original podia mandar os protestos para as Nações Unidas.

Como estas coisas, grandes e pequenas, de bilhões de dólares e de meio rublo, estão indissociavelmente ligadas entre si… Os livros baratos e a eliminação de analfabetismo constituíram os componentes técnicos da religião deles.

R.Darnton escreve no seu estudo sobre leitura na França no sec.XVII que sabia-se ler mas não escrever; em latim antes do francês. Desenvolvia-se as capacidades para ler Pater Noster e Benedicite. A nova religião – o comunismo – considerava-se uma teoria científica, deduzida das leis sociais. O comentário de Jan Mycielski sobre aquela reunião convocada por Bierut toca no ponto essencial: “não esqueça que os ditadores comunistas daqueles tempos acreditavam ainda que eram racionalistas. Acreditavam também que os cientístas estão do seu lado. De fato conseguiram atrair só os artistas (por um tempo limitado).” Para rezar pela cartilha deles, O Manifesto Comunista, o povo precisava adorar o ambiente natural do manifesto, a ciência. Lembra-se das frases: “o homem é a medida das coisas”, “os escritores são engenheiros das almas humanas”, “a construção da sociedade comunista”? Nada de revelações com metafísica, havia só a economia e física. Conseguiram criar em poucas gerações uma sociedade com nível de ensino quase inalcançável para norte-americanos – mas receitando a fé em medições e cálculos criaram o povo capaz de pensar sobre qualquer assunto.

Quem acabou com o comunismo, a economia? Gorbatchóv? A guerra de Afeganistão? O Papa? A Solidariedade? Sim; sim; sim; sim; sim. Mas também é verdade que ele acabou consigo mesmo pois chegou ao seu núcleo: os povos estavam prontos para avaliar o tamanho da sua suposta grandeza.

Falo sobre coisas que ultrapassam a estreita faixa da minha competência? Certo. Já estou voltando às anedotas do Instituto.

Chega. Para que falar sobre as neves derretidas. Não há mais o século XX. Um belo século, começou em Nanking em 1864, terminou em Kosovo em 1999. Se tentasse resumir o sentido do século XX, usaria uma única pergunta de Bertrand Russell. No texto “16 perguntas sobre o assassinato” que é republicado na sua Autobiography de 750 páginas, a décima quarta pergunta é de matar. Russell escreve:

“A descrição de Oswald foi transmitida pela polícia de Dallas apenas 12 minutos depois que atiraram no Presidente. Isso levanta uma das mais extraordinárias questões jamais postas em um caso de assassinato: Porque a descrição de Oswald ligada com o assassinato do Patrulheiro Tippett foi transmitida pelo rádio da polícia de Dallas as 12:43pm dia 22 de novembro se ninguém atirou no Tippett até 1:06pm?

Para ser mais exato: me espanta nem tanto a pergunta quanto a falta de qualquer tentativa de resposta pelos poderes que podem e devem saber. O muro de Berlim caiu, o Último Teorema de Fermat caiu, o acordo de paz no Oriente Médio caiu – mas esta pergunta fica reta e nojenta, enviando muito mau cheiro para o futuro.

Tive sorte e em vez de viver na Colômbia ou Angola podia aproveitar a vida em Wroclaw? Sem dúvida mas não sei se isso existe ainda. Li que neste ano apareceram na Polônia os posters “A cultura não é só no iogurte” – o Ministério da Cultura tentava divulgar algumas ações culturais. Mas veio Danone, mexeu os pauzinhos e até sem ação judicial os posters sumiram. Não me pergunte desde quando Danone tem a voz decisiva em questões culturais mas a mudança de ditadores comunistas para os juristas de corporações não me parece digna de ser chamada de progresso. Não sei se é um passo para frente ou para traz mas certamente é um grande passo na direção do hospício. Então talvez Stanislaw Lem teve razão: “Quando vai ser melhor?” – “Já foi.”

De qualquer modo, o que sobrou é esta coletânea. Ela não tem preço. Lá de onde eu vim havia uma livraria russa no centro da cidade. Convido cordialmente para dentro:
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