“Perguntas de 1%” do semestre 01.1

As regras eram seguintes:
  • Anúncio: quintas-feiras.
  • Lucro: a entrega de resposta pode dar 1% da nota final do curso.
  • O trabalho é individual (colagem proibida, excessiva consulta junto aos professores anti-ética).
  • Prazo e lugar da entrega: Coordenadoria (com Sílvia ou Iara ou Alcino) até 10:00am de segunda-feira.
  • Forma da entrega: dentro de um envelope na folha A4 (branca, não aquela arrancada de um caderno de alguma criança encontrada na última hora no corredor).
  • Conteúdo: o seu nome, o símbolo F ou G (Fundamentos I ou Geometria Analítica). Em seguida uma curta, legível e bem formulada resposta. Valem somente as proposições de português.

A lista das perguntas

  1. Quem era Mr.X?
  2. O que descreve esta tabela?
  3. Imago Creationis
  4. Não somos perigosos?
  5. Quanto vale uma unha encravada?
  6. O morro e o poeta
  7. Diploma
  8. Hadj ou Peregrinação
  9. Galegos e morenos
  10. Educação nacional
  11. O Porto
  12. Mini-países
  13. Lareira
  14. Psiquiatria norte-americana
  15. Regras e exceções

Primeira pergunta, 1/III/01

Quem era Mr.X?

Sob encomenda de um Papa o Mr.X escreveu vários volumes de livros sobre a ciência (que na opinião de John Baez “somavam-se em uma enciclopédia de ciência”). Portanto, a sua competência nunca foi posta em dúvida, mas quando teve 64 anos ficou preso por “suspeitas novidades” no seu ensino.
Quem era Mr.X?
Resposta. As personagens: Papa – Clemente IV. Cientista – Roger Bacon.
(Houve uma mini-dica de “Mr.” indicando a direção do mundo anglo-saxão.)

Não houve ganhadores nessa semana. Chegaram 15 respostas apontando ao Galileo Galilei. Um alvo fácil mas errado: não escreveu obras que cubrissem toda a ciência contemporrânea e teve 69 anos quando ficou preso (por causa das teses do seu livro Diálogo). Uma resposta mencionou Gerolamo Cardano (o propoente cita “Girolano”, a versão que nenhuma das minhas fontes menciona) – coincidentemente ele também ficou preso tendo 69 anos e também teve uma respeitável produção intelectual mas que não chegava a constituir uma “enciclopédia de ciência” – e uma resposta falando sobre Nicolau Copérnico, um tiro completamente falho, já que em 70 anos da vida dele não sofreu alguma ordem de prisão ou sequer um processo judicial.

Ah, para quem não entendeu o espírito da coisa: sim, escrevi que “valem somente as proposiçoes de portugues” mas em português próprio. Pouco me importa quanta sabedoria cabe no seu mouse ou outro mecanismo de cut and paste, valem exclusivamente as respostas filtradas por sua cabeça. Duvido que alguém de vocês usa linguagem do tipo sendo condenado à prisão perpétua nas masmorras do Santo Ofício ou Em 1632 já no pontificado de um novo Papa. Além disso, nunca pedi avaliar a personagem (o genial, ou um grande estudioso) ou a obra dele (mais importante dos métodos das ciências naturais), seria uma maldade pedir aos acadêmicos (que iniciam um longo processo de aprendizagem) que emitam umas opiniões mais apropriadas na boca de um especialista.

Segunda pergunta, 8/III/01

O que descreve esta tabela?

37111317192329313741434753596167717379838997
162616182228153521461358603335813414496
Analisamos o que vemos: na primeira linha há primos. Todos são menores de 100. São todos os primos menores de 100? Não, falta 2 e 5. O que une 2 e 5? Deve ser alguma coisa ligada com a notação decimal.

A segunda linha parece completamente caótica. O que fica um tanto esquisito na notação decimal? Os números naturais são bem comportados. Mas os seus inversos nem tanto assim. Que tal olhar para o desenvolvimento decimal de 1/3? E depois de 1/7? E ainda de 1/11? A suspeita ganha uma expressão verbal: parece que trata-se de comprimento do período de 1/p para p primo. Onde tem os pequenos valores? Ah, 37 e 41, da para conferir na calculadora (ou no papel). Está tudo bem encaixado e mesmo sem verificar (no computador?) todas as opções pode-se chutar com profunda fé em vitória:
A tabela expressa função que mede o comprimento de período de 1/p para primos menores de 100 e distintos de 2 e 5.
Mas não houve ganhadores. Lamento muito.

Terceira pergunta, 15/III/01

Imago Creationis

O cientista ficou tão empolgado com a sua descoberta que ele mesmo desenhou a medalha Imago Creationis que foi cunhada em prata levando esse texto: Omnibus ex nihilo ducendis sufficit unum. O que isso significa? De que descoberta se trata? Quem foi o cientista?
Quatro pessoas responderam – todas elas corretamente: Ana Lúcia, Dörthe (Fundamentos I), Rodrigo Caetano, Rodrigo Maciel (Geometria Analítica).

A frase significa “Um basta para fazer tudo do nada”. (Gostei da proposta da tradução da Dörthe: “Do nada ao tudo, um é suficiente”, se bem que isso é mais uma variação do que tradução.) Surgiu quando Gottfried Wilhelm Leibniz percebeu que a sequência
 1  10  11  100  101  110  111  1000  etc 
descreve de modo organizado (que hoje chamamos de “sistema binário” ou “sistema posicional na base 2”) todos os números naturais. Parecia então que achou aquele “átomo” de qual podia construir a matemática.

A redução de toda e qualquer atividade para uma sequência de dois estados: 1 (há sinal) e 0 (não há sinal) é a base do funcionamento do computador? Pois é, Leibniz formulou as idéias que eram precursoras dessa redução, foi ele quem tentava decompor os raciocínios em poucos “átomos” de comunicação.

(De onde uma das pessoas tirou a informação sobre “von Leibniz”? Sim, ele se tornou Freiherr (barão?) mas nunca encontrei sugestão qualquer que esta nobilização tornava-o “von”…)

Evitei aqui a palavra descoberta? Sim. Não é por acaso, tenho uns motivos para dar preferência ao termo invenção. É não é uma pequena modificação linguística, mas hoje não vou embarcar na conversa sobre isso. Talvez você queira dar uma pensada sobre o assunto? Valerá muito mais do que ouvir as minhas explicações…

Leibniz foi o primeiro inventor do sistema binário? Não é muito sensata a nossa mania de cronometrar a chegada dos cientista na meta do sucesso, como se fosse uma corrida de 100m. Aparentemente, antes do trabalho dele não havia uma reflexão escrita, formalizada e aprofundada sobre esta construção mas … como os estudantes de Fundamentos I vão ver em poucas semanas, há uma técnica de multiplicação de números naturais, chamada de “multiplicação de camponeses russos” que consiste efetivamente em transcrição de um dos fatores para a notação binária. Seria o caso de uma viagem da idéia de Leibniz para os estepes da Rússia? Tecnicamente isso não seria impossível – afinal, os linguístas afirmam que o “livro” russo (kniga) veio do antigo “livro sagrado” chinês (king). Mas parece que essa técnica de multiplicação é de mais longa data – e além disso os camponeses da Etiópia ficariam admirados que há algo russo no modo de calcular que usa-se na terra deles desde os tempos perdidos na memória.

Ah, não peça o seu pai ou a sua avô confirmar esta informação. Etiópia livrou-se de colonizadores uns 20 anos mais cedo que outros países africanos, mas não se percorre em pouco tempo todo processo desde construção das universidades até colheta dos resultados de pesquisas matemático-antropológicas. São as informações provenientes de pesquisas razoavelmente recentes.

Também tão ridiculizada incapacidade de “tribos” africanas de contar além de dois (por sinal, você chamaria de “tribo” uma aglomeração que contém 20 ou 30 milhões de pessoas? Por exemplo: tribo argentina?) revelou-se para pesquisadores que conheciam as línguas Bantu uma clara e inequívoca demonstração de uso na vida cotidiana de sistema binário. O que parece mais sensato: assumir que Leibniz teve emissários que viajaram no espaço e no tempo – ou repensar um pouco o negócio de “descobertas” e “invenções”?

Em questão de “átomos” da matemática, 200 anos mais tarde o famoso ditado de Leopold Kronecker (“Bom Senhor fez os números inteiros e todo resto e a obra das mãos do homem”) sugeria que não a notação binária mas o conjunto Z é o bloco básico na construção da matemática. E qual seria a atitude de visionários de hoje? Algum outro conjunto? Talvez o conjunto vazio? Outro tipo de conceito?

Não conheço muitas tentativas de expor visões desse tipo ao julgamento do povo matemático – quem se disporia de arriscar muito em troca de nada? – mas lembro-me do artigo de Paul R.Halmos (“Does Mathematics Have Elements?”, The Mathematical Intelligencer, 4 (1981), 147-153) que nota a onipresença de certas construções e conceitos (progressão geométrica, estrutura quociente, primos, função exponencial) em várias áreas da matemática.

Quarta pergunta, 22/III/01

Não somos perigosos?

Em Los Alamos colaboraram especialistas de diversas áreas. Os mais proeminentes eram físicos mas os matemáticos também tiveram a presença muito destacada. É suficiente mencionar os nomes de John von Neumann ou Stanislaw Ulam. Mas só os físicos ficaram com a fama de perigosos, importantes e imprevisíveis (para não dizer: loucos). Havia vários motivos para isso mas um dos elementos cruciais foi um texto que captou a fantasia das pessoas e criou o mito destacando só os físicos, deixando os matemáticos no imaginário popular lá onde sempre estiveram: distraidos, esquisitos mas inofensivos.
Quem foi o autor que recusou para a gente a máscara de poder e perigo?
A resposta: trata se da peça “Os Físicos” do dramaturgo suiço Friedrich Dürrenmatt.

Houve só uma resposta (correta) da Dörthe, turma de Fundamentos I.


Recebi uma mensagem que aparentemente tem aqui o melhor espaço para a minha resposta. É um mail de uma pessoa da turma de Geometria Analítica. Eis o texto.
Subject: perguntas de cunho matematico

Professor, perguntas de caracter historico sao interessantes, mas acho que o senhor deveria nos questionar sobre matematica. Por exemplo: sobre definicoes, calculos, teoremas, de modo que possamos pensar e nao sair por ai pesquisando sobre historia. Muitas vezes, se perde tempo pesquisando que pensando. Por isso peco encarecidamente que mude o seu enfoque. Matematicos por final pensam. Esta e a minha opiniao . Atenciosamente , ....
Falando sobre história (de algumas décadas atrás): quando nos meus tempos de estudante eu decidia desafiar os costumes e autoridades, caprichava muito mais tanto em questões de estilo quanto de qualidade de argumentos. Além disso não esquecia do trabalho inicial de tentar entender qual é mesmo o nome do jogo, quais são os jogadores, regras e prêmios.
Só isso em forma de crítica do texto. Por sua fragilidade ele me deixa em posição de excesso de vantagens e com isso obriga a muita moderação e cuidado. Procurando dar todo o crédito possível ao autor tenho que me lembrar que é uma carta assinada com o próprio nome da pessoa. Além disso deve se tratar de reflexões discutidas em algum grupo – e só esta pessoa decidiu expor as suas inquietações. Ponto para ela.
A primeira observação marginal. O uso do indicativo do presente é muito sugestivo mas não constitui um argumento por si mesmo. Você acha que há um conflito entre as “perguntas de caráter histórico” e o tempo para pensar – e eu não vejo isso assim. Pelo contrário, nunca esqueci o sentido (se bem que não me lembro a formulação exata) da máxima do George Santayana (professor de filosofia em Harvard 100 anos atrás): “quem não conhece a história está condenado a revivê-la”. (Acho que ele falou sobre “povos”.) Isso não foi um jogo de palavras mas uma ameaça.
A segunda observação: você não faz “perguntas de cunho matemático”; não são perguntas mas postulados (exigências? pedidos?) e não são de cunho matemático mas filosófico.

Ah, porque respondo neste espaço? Por um motivo óbvio: somente nestes textos, nos diretórios reservados as “perguntas de 1%” e “perguntas de 3%” coloco perguntas de carácter histórico. O motivo principal de separá-las do lugar onde ficam as discussões de provas, materiais sobre cálculo de proposições etc. era justamente o cuidado para que alguém não se confunde pensando que isso faz parte do curso ou constitui uma matéria obrigatória. Quer entrar na trilha que indico? Boa sorte – e tenha em vista que o prêmio pode compensar parcialmente as falhas das notas obtidas no curso. Não quer? Certo. Talvez seja um desafio grande demais para o seu preparo, talvez não tenha sabor do seu passatempo preferido.
Sim, em minhas aulas uso as referências históricas – na medida de meus magros conhecimentos e quando disponho do tempo para isso. Mas são os meus comentários e sugestões e nunca exercícios que obrigariam os estudantes de mergulhar em pesquisas históricas. Algumas dessas observações constituirão material obrigatório para estudantes, algumas levarão apenas uma sugestão: se quer entender porque havia violentas disputas acerca de noções matemáticas, aqui é uma das possíveis causas. Para adicionar um pouco de concretos, já que sem eles a teoria tende tornar-se um papo furado: a história de assasinato de Hippasus por causa da divulgação da irracionalidade da raíz de 2 vai ser relatada no curso de Fundamentos I como um fenômeno muito importante – mas não haverá minha insistência que os estudantes memorizem o fato e saibam relatá-lo na prova. A análise da interpretação inovadora do teorema de Tales introduzida pelo Descartes constitui uma parte obrigatória do curso de Geometria Analítica – é o único salvaguarda que eu vejo contra a disseminação de besteiras do tipo “Descartes inventou o sistema de coordenadas”.

Uma das possíveis interpretações do pedido de questionar “sobre definicoes, cálculos, teoremas” (além do que eu questiono dentro do curso conforme o plano de ensino, imagino eu) é que há pessoas que poderiam estar interessadas em desafios parecidos às “perguntas de 1%” mas no caso estritamente técnico dentro de uma das áreas da matemática. Mas não vejo como compatibilizar isso com a minha idéia original. Dentro da matéria ensinada? Não estaria disponível para ambas as turmas – e ficaria misturado com o material obrigatório dentro do curso. A graça desses desafios é justamente que independem do curso número tal e tal, podendo interessar um círculo maior de pessoas. Además, há um espaço para um aprofundamento de conhecimentos específicos de matemática: programas de PET, projetos de iniciação científica, orientação de um curso extra-curricular…

A frase “Muitas vezes, se perde tempo pesquisando que pensando” permite duas interpretações. A primeira – mais fácil e um pouco maliciosa – é que as pessoas não acostumadas a ler esperneiam quando alguém as incentiva de mergulhar em textos que não são de óbvia e imediata utilidade. A segunda interpretação, mais compreensiva, começaria com esta tentativa de reformulação: “quando a busca da informação é muito trabalhosa pode faltar tempo para usar a informação”. Este enfoque revelaria a faceta muito complicada do problema, pois aponta às questões de todo relacionamento no eixo “forma – conteúdo”. Neste caso seria mais fácil escrever um volume sobre a frase do que responder em poucas (e sensatas) palavras. Mas se for levemente truncada e podada, a frase parece um excelente material para uma das próximas “perguntas de 3%”. Por enquanto sigo com um programa mais modesto (embora histórico), formulado abaixo.

Quinta pergunta, 29/III/01

Quanto vale uma unha encravada?

Em um país tropical uma enorme empresa estatal estava em greve. O ministro do ramo ia aparecer em uma audiência para começar as negociações – mas não apareceu. Em vez disso mandou informar através do seu assessor que precisava ficar de repouso pois teve uma unha encravada. As consequências para a greve (duração, custo, radicalização dos discursos) devem ser bastante óbvias. Quando o governo se deu conta do tamanho do prejuízo, plantou-se as informações que não era bem assim, pois a coisa era muito grave, já que o ministro teve diabetes e a unha ameaçava a vida dele – mas isso não gerou uma compaixão entre os grevistas e a greve continuou.
Como se chama o país em questão? Quem era o ministro? Qual era o mais alto posto que ele já ocupou naquele país?
A resposta: Aureliano Chaves, famoso por ser o vice-presidente civil do último presidente militar João Batista Figueiredo, no consecutivo governo de José Sarney tornou-se o ministro de Minas e Energia. O incidente relatado aconteceu durante uma greve da Eletrosul.

Não houve respostas. Entre quase 100 pessoas adultas e com nível de instrução e fontes de informação muito acima da média da sociedade não havia sequer uma pessoa que conhecesse o fato (um detalhe, mas muito ilustrativo para a mentalidade da classe política brasileira). Isso explica como é possível que os personagens com passado tão escandaloso como Fernando Collor ou Itamar Franco podem cogitar publicamente as suas altas pretenções para as próximas eleições. Afinal, se as elites andam desmemorizadas, como é que o povo manteria a memória do passado recente?

Sexta pergunta, 5/IV/01
Antes de propor a próxima pergunta coloco aqui algumas informações do interesse dos estudantes de ambas as turmas (embora mencionadas somente em uma das aulas).
Linguagem Icon
www.cs.arizona.edu/icon/
Tutorial de Icon de Thomas W. Christopher. Leve, inteligente, eficiente.
iconprog.pdf
Enciclopédia de Sequências Integrais de Neil J.A.Sloane
http://oeis.org/
Calculadora Simbólica Inversa de Simon Plouffe
oldweb.cecm.sfu.ca/projects/ISC/ISCmain.html


O morro e o poeta

Em um país europeu um poeta traduzia poemas brasileiros para a língua dele. Um dia escreveu para o seu amigo de Belo Horizonte: “o que é um morro?” O amigo respondeu mandando um desenho de morro. O poeta respondeu: “Tenho dicionário e conheço o significado do vocábulo mas não o entendo no contexto. O poema `A menina do morro' que estou traduzindo sugere que ela é pobre – mas na minha cidade os morros são ocupados por pessoas muito bem situadas na sociedade”.

Com tempo o tradutor chegou a entender perfeitamente o que é morro no Brasil pois veio morar aqui, tornou-se um dos líderes intelectuais no seu ambiente e deixou várias obras que por muito tempo marcarão a sua importância no panorama cultural brasileiro.

Como se chama a (belíssima, por sinal) cidade que ele deixou para viver no Brasil? E qual é o nome dele?
A resposta: tratava se de Paulo Rónai, que veio da Hungria (da capital Budapeste).

A única resposta (do Wanderley, de Fundamentos I) sugere que tratava se de
Escritor francês André Beiout viveu no Brasil no sec.XX em meados de 1930, fazendo parte do surrealismo brasileiro, traduziu a menina do morro de Auristéle Montéro no escola francesa Les Enfants
Ooooh, que coincidência interessante… Claramente, merece o ponto – desde que o autor me fornece a sua fonte de informação (pois não consegui achar informações sobre tal pessoa em meus dicionários, enciclopédias, livros – e a busca na Internet também deu em nada).

Sétima pergunta, 12/IV/01

Diploma

Aprentemente a palavra “diploma” tem raiz “di” – isto é 2. Porque?
A resposta: originalmente o documento que comprovava conhecimentos ou plenas potências da pessoa diplomada não costumava ser enrolado mas (por causa do seu tamanho) dobrado; compare com palavra latina “diplois” – manto, vestido dobrado.

Houve uma resposta, mas o autor não acertou o alvo.

Oitava pergunta, 19/IV/01

Hadj ou Peregrinação

Você viu algo na TV sobre as dificuldades de sauditas quando aparecem em Meca milhões de pessoas? Os problemas logísticos são de enorme escala – mas isso não é uma dádiva dos tempos modernos. Há séculos a viagem ritual (que dava o nobre título de hadji para quem a fez) movimentava enormes massas de muçulmanos.

Um excelente exemplo é a viagem de um certo imperador e os seus 60 mil súditos. A rota deles para Meca passava por Cairo, naquele período uma metrópole habitada por aproximadamente um milhão de pessoas. Um historiador que visitou Cairo doze anos depois registrou que o povo guardava muito bem na memória aquela passagem – tanto por causa da sua opulência quanto pela disciplina e religiosidade dessa imensidão de viajantes. Um elemento impressionante daquela passagem foi a quantidade de ouro gasta no caminho deles – doze anos depois do acontecido o valor do ouro em Cairo continuava sendo deflacionado.

Você consegue achar o nome do imperador, do império dele e localizar isso no tempo?
A resposta: trata-se do imperador Mansa Musa do Mali, um dos maiores impérios do mundo de século XIV. (Há várias grafias do nome dele, o que é bastante natural. Basta lembrar-se de Pequim que está virando Beidjing – ou Bombaim que está virando na notação ocidental Mumbaim.) A Enciclopédia Britannica informa que a viagem dele começou no ano 1324.

Houve 4 respostas, 3 delas (Alex, Ana Lúcia, Wanderley, todos de Fundamentos I) corretas. A quarta resposta sugeriu que foi a viagem do imperador romano Justiniano em algum momento entre anos 527 e 565. Tomando em conta que o Maomé nasceu em 570 e dominou Meca em 630, isso tem tanto sentido quanto uma sugestão que alguém viajou a Belém para reverenciar a fé cristã no ano 15 antes do Cristo.

Nona pergunta, 26/IV/01

Galegos e morenos

No Brasil “galego” significa uma pessoa loira – ou de pele clara. Como esse fato é ligado com a história da Europa do século VIII?
Recebi 12 respostas. Esta vez vou modificar ligeiramente a rotina e vou comentar as respostas antes de dar a resposta.

Alguém começa pelos Celtas e Iberos (ainda bem que não começou desde pinturas rupestres…) e afirma que “de repente surgem os Romanos”. Isso não era tão “de repente” assim e não tem ligação qualquer com os loiros. Mais feliz é a dica dele que “o termo português para designar os muçulmanos é mouro (talvez haja relação com a palavra moreno)”. Há, sem dúvida alguma. “Mouros” eram os habitantes de Mauretánia - escuros árabes, ainda mais escuros berberes, completamente negros fulanis – em geral “morenos”.

Quase todos usam quase mesma frase sobre a Península Ibérica que “esteve sob dominação dos povos germânicos” e várias vezes dizem que “a língua por eles falada era o galego” – o que não é verdade. Que tal olhar no mapa onde ficava a antiga Galiza (Galícia, pela grafia castelhana)? Um dos autores fornece o seguinte toque pessoal: “Este povo caracterizava-se por serem fortes, ousados, corajosos e fisicamente claros (loiros)”. E eu pensei que depois de 1936 quando Jesse Owens (nem um pouco loiro, pelo contrário, completamente negro) tirou quatro medalhas de ouro, estragando irremediavelmente a festa de fortes, ousados, corajosos e claros nazistas, ninguém mais teria peito de vender uma apodrecida teoria rasista de associações entre os olhos azuis e cabelo loiro e todos os valores morais e físicos - mas aparentemente há fontes (no Brasil do ano 2001) que servem ainda esse indigesto prato.

Por sinal, prefiro falar sobre “visigodos” – era um povo germânico, sim, mas usando esse termo evito uma sugestão implícita que eles vieram do lado da Alemanha de hoje. Tudo indica que visigodos habitavam sempre bem outras bandas.

Há quem sugere que após a invasão do ano 711 “foi instituída uma nova língua o árabe”. Quer dizer, um espécie de esperanto, inventado em poucos anos?

Supostamente os germanos “continuaram usando o galego, daí a origem.” Origem do que, de cabelos claros??

Mais um quem bate na mesma tecla mas em outro ritmo: os da Galícia que por “circunstâncias históricas que a separara, do resto da Espanha, preservou quase intactos o idioma galego, que apresenta estreitos vínculos com o português, e as tradições de seus habitantes”. (Tradição de ter pele clara???) Vocês devem usar uma idêntica fonte de informações – as mesmíssimas expressões que transmitem as mesmas informações pouco importantes no caso. Aha, “estreito vínculo com o português” pode ser tranquilamente substituido por “que é quase idêntico com português”.

Ponderei um pouco sobre a sua insistência na questão linguística (a pergunta é “porque os loiros são chamados de galegos?” – então uma resposta tem que elucidar porque os outros falantes do galego (português) não têm esse apelido). Você tem a faca e o queijo na mão mas o queijo não chega até a boca – o que está acontecendo? Uma conclusão: uma louvável inocência. Acho isso maravilhoso que as pessoas da sua idade nem querem sujar a boca com a palavra “sexo” mas tenho uma notícia desagradável: não há como explicar os traços físicos de populações falando sobre idiomas e línguas. Os fatores bem diferentes estão aqui presentes e terei que fornecer algumas informações sobre os fatos da vida.

Tanto suábios (que refugiaram-se na Galícia) quanto visigodos (que acabaram com eles no século VI) eram basicamente de pele clara e loiros. Dominando durante séculos os iberos e romanos eles marcaram por meio de miscigenação a aparência física do povo da Península. A próxima onda de miscigenação iniciada em 711 com a invasão dos árabes (e com duração de quase 700 anos) modificou as características físicas dos povos ainda mais profundamente pelo fato que é fácil de expor na linguagem de hoje: o gene de cabelo escuro é dominante, quer dizer: se há duas colorações de cabelos entre os pais, há tendência de crianças herdar o cabelo escuro. Até certo grau o mesmo vale para a cor dos olhos - bem, não existe exatamente um único gene responsável por isso, o processo é bem mais complicado, mas simplificando-o até dizer chega, dá para comprender da mesma maneira o escurecimento dos olhos e da pele da prole mouro-ibérica. Mas uma região da Península livrou-se rápidamente dos invasores. Já em 722 começou a “Reconquista” e o rei Alfonso I das Astúrias por volta do ano 750 dominava completamente a região da Galícia. Isso significa que naquela região os mouros não tiveram tempo para modificar essencialmente o “pool genético” da população local e até hoje – quase 1300 anos mais tarde – há destacadas diferenças físicas entre os Portugueses do norte e do sul do Portugal.

Então era possível cortar maior parte das suas divagações étnico-linguísticas e responder do modo razoavelmente curto:
Resposta: na Península Ibérica havia pessoas claras e loiras – descendentes dos povos germânicos. A dominação árabe da Península durante quase 7 séculos em geral apagou esta característica – salvo a região da Galícia que estava exposta a miscigenação forçada por período restrito apenas a vida de uma geração. Em consequência em vários lugares “galego” é sinônimo de loiro ou de pessoa com pele clara.
Uma (quase) réplica do acontecimento houve no século XX na Alemanha (e também no Bangladesh, China, países africanos…). Os milhões de soldados do exércico soviético – em grande parte das étnias asiáticas – violentavam em massa as mulheres da conquistada Alemanha (e dos liberados aliados). Seguramente há dezenas (ou centenas) de milhares de crianças com herança genética “ariana” só pela metade – mas a maciça violência de curta duração não modifica essencialmente o pool genêtico de tão grande sociedade.

Décima pergunta, 3/V/01

Educação nacional

A instituição não se chamava de um “ministério” mas era o primeiro Ministério de Educação na Europa. Cuidou de laicizar o ensino (remoção da teologia, restrição do papel da língua latina), pondo em destaque ciências naturais, história, o “ensino moral” e o vernáculo.

Quando e onde a instutuição começou funcionar?
O nome da instituição era “Comissão de Educação Nacional”, foi criada na Polônia no ano 1773.

Nunca ouviram falar? É pena, pois nessa estória há elementos interessantes e úteis agora, no século XXI.

A Comissão (que era subordenada diretamente ao Rei) marcou de modo decisivo o futuro da Polônia. Vários historiadores consideram o seu trabalho essencial na sobrevivência da nação quando no século XIX o país sumiu do mapa. Bem, o papel principal na Comissão desempenharam uns jovens, naquele momento com 23 anos. Todos eles mal acabaram de formar-se na Escola da Nobreza (“Szkola Rycerska”) criada em 1765.

Conheço algumas outras manifestações da mesma (ou quase mesma) sequência de acontecimentos em outras épocas e outros países: um país em crise, algumas autoridades se acordam e cuidam de imediata e intensiva terapia educacional e moral para os jovens da elite; em pouquíssimos anos a elite completamente regenerada implementa as novas idéias entre os jovens de todas as classes sociais – e os efeitos da ação deles permanecem na vida social do país durante centenas de anos.

Justamente por conhecer uns pingos da história considero profundamente equivocadas – para não dizer ridículas – as bem-intencionadas ações do tipo “para salvar o Brasil vamos fazer uma boa escola na favela X e Y”. Essas favelas sofrem a mesma desgraça já 80 ou 100 anos e aguentarão a espera de outros 8 ou 10 anos. A prioridade para as elites não é cuidar de algumas centenas de favelados mas de modificar urgentemente a sua própria cara e alma; o desmantelamento da favela virá de imediato como uma consequência de mentalidade menos besta das elites brasileiras.

(Para evitar os graves desentendimentos: estou falando sobre as prioridades; se um jovem passa as tardes entupindo-se de cerveja num barzinho então uma visita de três horas por semana na favela pode constituir um elemento importante na descoberta dos outros mundos. Você é um daqueles que precisam do programa de Gugu para descobrir que a favela é habitada por seres humanos? Então favela não precisa de você mas você precisa da favela. Vai lá e veja se pode ser útil para alguém que mora lá.)

Por sinal, lembrem-se que vocês fazem parte da elite. Vai depender da sua decisão individual se você vai ser aquele representante da elite que leva vantagens, não precisa ficar em filas e ri dos que acreditam no código de trânsito – ou se vai formar um centro de competência, fé e esperança para os jovens do seu município onde você voltará para trabalhar.


Havia só uma resposta. Infelizmente errada. Pecou pelo anacronismo pois sugeriu que tratava-se da França da segunda metade do século XIX. Veja bem, se pergunto sobre o primeiro ministério de educação na Europa então seguramente não é algo que teria acontecido após o ano 1789 – como você deve se lembrar já a Revolução Francesa laicizou profundamente a sociedade (para entender a força dos sentimentos anticlericais lembre-se que a Igreja possuia 1/3 das terras da França). Mas se a resposta fosse tão óbvia: “o ministério da Revolução de 1789” então não perderia seu tempo perguntando sobre isso.

Décima primeira pergunta, 10/V/01

O Porto

Há dois meses surgiu a notícia que os terminais nordestinos estão ganhando terreno às custas do tradicional porto da Região Sul que no passado estava responsável pela exportação de 60% da soja e farelo do Brasil. No ano 2000 por esse porto passaram apenas 40% de exportações dessas mercadorias.
Essa cidade portuária é … e ela fica no estado …
A resposta para a 11ª pergunta é: Paranaguá, no Paraná.

Houve 20 respostas, parece que todas elas vindas da turma de Fundamentos I. Digo “parece”, pois duas são anônimas. Uma das anônimas identifico pela envelope como pertencente a Alexandra. A outra? Que o autor me ajude.

Só uma resposta errada indicava Rio Grande, RS. Mas esta resposta errada ganhará um ponto pois vale para mim mais do que algumas das respostas certas. A pessoa indicou na resposta de modo inequívoco que fez uma honesta busca de informações – infelizmente baseou-se em dados do porto de Rio Grande que não faz um trabalho muito correto, pois ansioso para vender o seu peixe procura vender imagem do que quer se tornar em vez de informar o que é. (É duvido que vá se tornar aquela grande coisa – para mim é mais um desses elefantes brancos brasileiros. Se você pretendesse escoar os seus grãos por lá, antes faria uma viagem até Rio Grande para avaliar as condições de viagens de seus caminhões e descobrindo o estado de longa estrada Porto Alegre – Rio Grande certamente optaria pelo porto de Itajaí ou Paranaguá ou Santos.)

Se falo que esta pessoa fez uma honesta busca então tenho algumas suspeitas com respeito aos outros envelopes? Claro. A quantidade nunca vista antes, o fato que todas elas concentraram-se em uma das turmas – não precisa ser um bom estatístico para olhar a esse resultado com surpresa. O que fazer, investigar quem buscou e quem colou? Bobagem, perda de tempo e ainda quase impossível de executar. Então elimino apenas 5 respostas por motivo técnico (entrega da resposta devia ser na folha A4) e acho que quem jogou pouco corretamente comigo um dia vai se arrepender. Isso não significa que imagino tal quadro: uma pessoa que colou a resposta acorda-se no meio da noite e sente os tremendos remorsos: “como eu podia fazer aquela coisa feia e em troca de um magrinho ponto percentual?” O modelo é um pouquinho mais complexo. Uma pessoa que se da bem colando incentivada pelo sucesso volta a colar em uma outra oportunidade, e em outra de novo, aos poucos liga cada vez menos pelas regras de jogo – até que em algum jogo vai descobrir de modo muito desagradável que as regras têm mesmo a sua importância.

Portanto os ganhadores do ponto são: Alex, Ana Lúcia, Cristiane, Fabiana, Karen, Lauri, Margot, Mariana C., Patrícia, Piersandra, Velani, Walisson, Wanderley e um anônimo. (Esclarecida identidade dele: Luiz Carlos.)

Décima segunda pergunta, 24/V/01

Mini-países

Tenho sentimentos mistos pensando em mini-países, o Reino de Tuca-Tuca, Ducado disso, Principado daquilo... Parece que foram feitos para guardar o dinheiro do nosso bom juíz Nicolau ou para fazer princesa de alguma atriz americana. Ou para abrigar os esportistas que não gostam de pagar impostos em casa. Mas há um minúsculo país que desde centenas de anos não liga pelos títulos de nobreza mas com nobreza cuida de sua independência e é a mais antiga república em atividade. Qual é o seu nome?
A resposta para a 12ª pergunta é: San Marino.

Houve 12 respostas, todas corretas. Os ganhadores do ponto são: Adriano, Alex, Ana Lúcia, Bruno Coral, Cristiane, Débora, Fabiana, Lauri, Luiz Carlos, Patrícia, Piersandra e Wanderley, todos de Fundamentos I.

Décima terceira pergunta, 31/V/01

Lareira

Parece que você está adquirindo a capacidade de buscar uma informação sobre “coisas”. E que tal informações sobre “idéias”? Quer dizer: nem tanto os fatos como a sequência de consequências provocadas por esses fatos. Por exemplo: parece fácil dizer porque a invenção de lareira foi tão impressionante do ponto de vista técnico: o eficiente aproveitamento do calor junto com eficiente envio para fora da fumaça. Mas porque esta invenção modificou tão violenta e rapidamente a estrutura de relações sociais em sociedades da Europa feudal? (O fenômeno é fascinante mas pode ser descrito em poucas e curtas frases. Em outras palavras: favor, não me mande um trabalho com três capítulos. Não achando a resposta no início o meu cérebro vai se desligar.)
Os “nobres” ficavam junto ao “povão” naquela sala do castelo que estava aquecida com a fogueira no meio. A invenção da lareira permitiu que eles se afastem aos seus aposentos sem o risco de congelamento imediato. Evitando o contato cotidiano com o povo (com toda inerente exposição de sua vulnerabilidade e seu lado humano e comum) começava-se criar o mito de “sangue azul” e outros atributos especiais que supostamente caracterizavam essa classe social.

Houve 9 respostas. Todas elas associam o surgimento da lareira com as condições sanitárias de habitações européias da Idade Média. Há aqui algumas verdades, várias meia-verdades e algumas tremendas confusões. Além de inconfundíveis indícios de – digamos – empréstimo de resultados (se “pocilga” aparece repetidamente grafada como “Possilga”, isso não deve ser por telepatia).

Bastante ilustrativa é a resposta que começa: O fim da Possilga modificou as relações das sociedades da Europa feudal e termina assim: com a invenção da lareira, para aquecer as casas, desapareceu a possilga, acabando com as doenças e com o frio.

A confusão básica consiste em identificar “condições” e “relações” sociais. Há um fluxo de influências entre os dois fenômenos mas nem é automático nem rápido. Notem que as condições da vida modificaram bastante com o abafamento da inflação mas relações sociais ficaram quase intactas. Em seguida, pocilga em si não é culpada – veja que na Alemanha de hoje várias propriedades rurais têm o sistema de aquecimento de condução de calor do depósito de esterco (que no processo de fermentação cria alta temperatura – e os canos transmitem para casas calor mas nem cheiro nem micróbios). Também o tipo de habitação não mudou tão facilmente só porque apareceram lareiras – saiba que em Paris dos anos 60 do século XX um terço de apartamentos não tinham banheiro com chuveiro ou banheira – mesmo se a distribuição de gas à domicílio e poliferação de chuveiros aquecidos com gas começou no século XIX. O próximo fator: a península Ibérica sob domínio dos árabes primava pela higiene (só no século XIX Espanha voltou aos padrões da limpeza pública e particular do século XI ou XII) mas ficava submissa às epidemias por igual com o resto da Europa.

Además: há em trabalhos menções de “promiscuidade” mas aparentemente sem saber exatamente de que se trata, já que uma pessoa cita “a falta de promiscuidade”. (Na dúvida, dé uma olhada no dicionário. As vezes isso salva do ridículo.) Então vamos ver: promiscuidade é a mistura indiscriminada – mas básicamente usa-se o termo para descrever os excessos sexuais. Por exemplo, levantamentos estatísticos feitos após a primeira leva das mortes entre homossexuais de San Francisco mostraram que em média as vítimas tiveram acima de 500 parceiros. Mas como entra promiscuidade na casa medieval sem lareira? Bem, do mesmo modo como nos sítios de vários recantos deste país de hoje, aos quais chega já Coca-Cola mas ainda não chega educação primária ou responsabilidade civil: com uma única cama para toda família são frequentes casos de gravidez das moças – causadas por pai, padrasto ou irmão. Note ainda que na Idade Média a noção de “criança” ou “adolescente” não tinha o mesmo sentido de hoje – os conhecimentos de pessoa com 10 anos aproximavam-se mais ao que hoje sabe um morador da rua com esta idade – e fica mais claro como a casa com um cômodo e com uma cama estava relacionada com a promiscuidade. Mas duvido que a lenta difusão de lareiras modificasse isso tão facilmente.

Se você quer visualizar como a lareira afastou a aristocracia da sociedade, imagine que a Universidade construiu o Palácio do Governo – ops, desculpe, o Palácio do Professor – e você não encontra mais os professores nos corredores, não vê mais uma meia furada ou calvice – apenas vê a fachada luxuosa do Palácio, assiste as aulas em circuito interno da TV vendo só o rosto do professor, manda as perguntas pelas cartas que começam com “Vossa Excelência” – e as audiências (não consultas) estão marcadas com um monitor engravatado e arrogante. Em poucos anos “professor” vira o sinônimo de “semideus”.

Décima quarta pergunta, 7/VI/01

Psiquiatria norte-americana

Quanto aos problemas psicológicos, não somos mais o terceiro mundo. Já chegaram aqui o stress e o síndrome de pânico, como documentam os programas da TV relatando os sofrimentos da classe média brasileira. Gozado, uma doença vem, outra vai … Não se ouve mais da drapetomania, diagnosticada nos Estados Unidos no século XIX, descrita como “irresistível propensão de fugir”.
Qual grupo social costumava sofrer de drapetomania e qual era o tratamento administrado pelos psiquiatras daquele país?
Cito por completo a resposta da Ana Lúcia:
Grupo social: Escravos.

Tratamento:“Arrancar o demônio deles” o que deixa subentendido que era um tratamento a base de chicotadas. No entanto, uma das referências menciona amputação dos dedos do pé.
Meus comentários.

A doença foi inventada por um tal de Samuel A. Cartwright por volta de 1850. Um outro nome que ele deu: a letargia da mente. A história tão vergonhosa que a Encyclopaedia Britannica esquece por completo o assunto. A coisa ressurgiu graças ao livro de James A. Findlay, com título “Drapetomania: A Doença Chamada Liberdade”. Na Rede o assunto é mencionado em sites mantidos – pode se supor - por ativistas de luta contra o racismo – e por isso deve-se ponderar os seus argumentos pois como uma fonte de informações eles podem não ser completamente objetivos. Por isso destaco a resposta da Ana Lúcia que cuidadosamente escreve: “uma das referências…”. Sem aprofundar-se no assunto é difícil de dizer se foi uma prática disseminada ou apenas um isolado ato de vingança de um escravista.

“Saber ler” significa na sua opinião ter capacidade de transformar os sinais gráficos em ondas sonoras? Bem...eu diria que é um bom começo, mas tratando-se dos universitários poder-se-ia esperar alguma capacidade de processamento de dados pelo cérebro. Será que no caso de outras 6 pessoas (que submeteram as respostas) isso aconteceu mesmo? Escreve alguém: “Os psiquiatras daquela época procuravam convencê-los que são iguais a nós, brancos. E, que tinham, assim como as demais raças, todos os direitos que Deus nos garante.”

Lindo. Até que consigo imaginar isso. Vem a uma fazenda na Georgia uma carroça, desce dela um psiquiatra e fala ao escravo: `Seu Joe? Tudo bem? Vim da Atlanta, dá para gente ter uma conversinha? Eu até trouxe o sofá, 'tá aqui, na carroça…'.

Isso foi um feito individual. Mas há uma pérola repetida em 5 respostas (auto-replicação, telepatia ou propagação dos conhecimentos?) que soa assim: “A cura foi um senhor de escravos, que criou necessidades razoáveis e estruturou o meio de trabalho dos negros.”

Isso mesmo. Bem parecido ao processo brasileiro: quando a Princessa Isabel libertou os escravos (em vez de re-comprá-los para o Estado) os senhores de escravos criaram as necessidades razoáveis para o fim do Império.

Será que esses autores de respostas escreveram dormindo - ou talvez não entendem o que significa o termo “escravismo”? “Não ligo pois ele já se foi”? Mais de 100 anos que sumiu? Nem tanto assim, prezados universitários. Se tentassem procurar, achariam nesta cidade muitas pessoas cujo avó ou avô ainda nasceram escravos. As lembranças está embutidas em maneira de diretor da fábrica falar com os operários, em tratamento dispensado pelos motoristas aos pedestres, em brutal e arrogante “alô, quem tá falando?” e em muitos outros detalhes.

Eu sei que 1% da nota não é uma grande coisa, mas também não há necessidade de exagerar com desleixo…

Admito que sobreestimei fortemente a sua capacidade de associações. Pensei que várias pessoas se lembrariam de uso de psiquiatria na falecida União Soviética, onde os “dissidentes” foram tratados como loucos, sofrendo de uma forma de esquizofrenia. Daqui – pensei – talvez alguns partiriam para uma reflexão sobre a ligação entre “normalidade” e os poderes que pela força estabelecem os critérios de normalidade. Parece que a tarefa não é para hoje ainda. Mas quem sabe, talvez amanhã…

Décima quinta – e última do semestre – pergunta, 20/VI/01

Regras e exceções

Cada regra tem uma exceção... A frase está tão batida que entra implicitamente no dicionário Aurélio disfarçada de uma definição: “Exceção [...] 2. Desvio da regra geral”. Mas isso tem tanto sentido quanto afirmar que “cada balão tem um furo”, fica claro que se for furado então vira um ex-balão.

Há quem tenta salvar a sensatez das coisas inconciliáveis (usando o processo que a psicologia denomina de “racionalização”) dizendo: “já que a velha regra foi provada inadequada pela exceção, então ela, emendada pela cláusula sobre exceção, forma uma nova regra”. Uma tentativa até que lógica – mas evitando o problema em vez de resolvê-lo. E o problema é: como alguma frase sensata virou esse monstrengo sem rumo ou prumo?

É fácil de supor que a besteira veio por meio de uma tradução. Mas buscar uma explicação em francês não levaria longe pois lá também uma contradição transmitida pela expressão análoga – “faire exception à une règle” – está tão arraigada que não ajudaria a traçar o caminho de volta ao sentido. É um pouco divertido que a versão inglesa “the exception proves the rule” ajuda mais do que francesa…
O meu Webster's (unabridged) deve pesar uns 3 kg mas as vezes mostra que vale quanto pesa. Cito dele:
the exception proves the rule; the exception tests the rule: often used to mean “the exception establishes the rule.”
Portanto, inicialmente havia a expressão: “cada exceção prova a regra” com sentido original de “provar” como é usado até hoje: testar, experimentar. Uma exceção desafia a regra e só uma delas sai viva do duelo. Ou a exceção é aparente ou a regra é falsa.

Parece que inicialmente perdeu-se a compreensão do sentido da palavra “provar” e uma vez o sentido desvirtuado, podia-se impunemente mudar a formulação para combinar com a nova (e estúpida) interpretação.