Alguns visitantes da minha vitrine encontrando-me (pessoa ou virtualmente) fazem as perguntas que já tentei responder - só que a resposta está em arquivos redigidos em inglês … Parece que o modo mais rápido de vencer a barreira da língua é com o meu esforço - traduzindo os textos em português :) Tudo bem. Creio que as observações colocadas abaixo podem ser úteis para algumas pessoas do ramo.


Agradecimentos. As reflexões colocadas neste arquivo perderam metade de seu comprimento e ganharam em qualidade graças aos comentários profundos e impiedosos do meu amigo, Jerzy Kocik. Posso me considerar uma pessoa com muita sorte tendo um leitor tão cuidadoso e dedicado como ele.

Ando admirando

  1. 1 x 1 = 1
  2. 0 = ?
  3. O número 0 é ímpar?
  4. Teorema de Tales: como formular?
  5. Teorema de Tales: qual versão?
  6. Teorema de Tales: é um teorema mesmo?
  7. O axioma sobre vetores que comutam
  8. O axioma sobre scalar 1
  9. Cordas
  10. Muitas faces do grupo com seis elementos
  11. O que é uma ``série''?
  12. A não-trivial permutação trivial
  13. O resto para chinês


Os mini-artigos 4-13 estarão traduzidos logo [promessa feita no dia 28/VI/02 :) ]
O texto em inglês está aqui


1.     1 · 1 = 1

No final do meu ginásio uma dama tentava me convencer que multiplicando os comprimentos de lados de um retângulo obtem-se a sua área. A tentativa constituia a obrigação profissional dela, já que era a minha professora de matemática.

Ela fez um esforço para tornar o assunto claro. Cortou no quadro negro o retângulo em caprichados quadradinhos, todos eles com a base do mesmo comprimento, e não havia discórdia que tendo n dessas unidades na reta horizontal de base e m unidades na reta vertical ter-se-ia n · m de pequenos quadrados. Mas nessa altura ela anunciou com um largo sorriso que partindo do fato que 1 · 1 = 1 podíamos concluir que a área era n · m · 1, isto é n · m.

Por algum motivo não gostei do argumento e sugeri que um fato não teve ligação alguma com o outro. Ela repetiu o esforço de me explicar como se multiplicava um por um mas eu insistia que aceitava ambos os fatos mas continuava convicto que eram os fatos completamente desconexos. Após algumas repetições de nossos pontos de vista ficamos de pleno acordo em achar que o outro era completamente idiota. A escaramuça foi vencida por ela, já que ela controlava o caderno de notas.

Relembrei a estória após anos - será que isso foi na aula da teoria de medida ou talvez da topologia geral? Não me lembro mais. Mas agora isso volta a mim cada vez que ministro o curso de Geometria Quantitativa. A matéria parece ser o melhor ambiente para ressucitar o tópico. O currículo obrigatório de 8 semestres dos nossos estudantes não contém a teoria de medida ou topologia e gostaria que eles formassem as suas opiniões sobre esse assunto antes de começarem de ensinar em escolas de Santa Catarina. Então dou o exercício: vá medindo todas as áreas como de costume, usando os argumentos padronizados: dois triângulos congruentes terão a área do paralelogramo obtido colando-os junto; figuras poligonais serão medidas quebrando-as em triângulos disjuntos - e assim por diante, recorrendo aos raciocínios sobre as costumárias isometrias. Mas um quadrado com lados unitários medirá 5. A pergunta: aceitando esses pontos de partida chega-se a alguma contradição?

A prática mostra que não é um exercício da preferência deles.


começo

2.     a 0 = ?

Pois é, mais uma vez vem a questão de potência zero. Como provar que o resultado é 1?

Com certa frequência a pergunta volta a mim e de novo repito a argumentação: imagine que você acabou de sair de um cartório onde você declarou que a sua filha recém-nascida vai se chamar Estela. O seu amigo o encontra na rua e vendo o neném em seus braços pergunta o nome dela. ``Estela'' você responde - e o amigo questiona: ``e como você pode provar que ela é Estela?" Você apenas levanta os braços: ``não preciso de provar coisa alguma. Acabei de decidir que assim ela vais ser chamada.''

Esta analogia é válida? Podemos colocar qualquer coisa como o valor de a0? Bem, será que eu podia colocar qualquer sequência de sons no lugar de ``Estela''? Há diferentes regras em diferentes lugares mas sempre haverá algumas restrições. Además - é a coisa mais importante - eu tive alguns bons motivos que me levaram a escolher ``Estela'' entre milhares de outras possibilidades.

Quais são os verdadeiros motivos que levam a gente à definição com ``um'' do lado direito? O problema é que expõe-se costumariamente um motivo falso de "contagem de número cada vez menor de fatores'':

2 = a · a,        a 1 = a ,
do modo que dividindo mais uma vez por a o estudante é levado a aceitar que ``0 = 1'' é uma escolha adequada. É uma pista falsa. Do mesmo jeito um estudante poderia raciocinar assim: ``pomos  a · a = a 2  pois 2 corresponde ao número de fatores. E se tenho somente o elemento a, não há multiplicação, portanto não há fatores e devo aceitar  a = a 0 !''

O caminho que costumo percorrer é anacrónico até um certo grau mas um matemático não tem obrigação qualquer de repetir a trilha confusa reconstituida pelos historiadores da ciência. Eu não conto aos meus estudantes que é exatamente assim que as difíceis noções foram inventadas. É melhor dizer que esboço um quadro que introduz mais ordem do havia de fato no passado.

Portanto, começamos com uma obviedade que é mais fácil de somar do que multiplicar. Nós queremos ter uma função mágica que transforma a multiplição em adição; em vez de multiplicar os números a gente somaria alguns novos números, chame-os de ``espíritos'' ou ``alminhas'' dos números originais. Ou respeite a tradição e chame-os de ``logaritmos''.

Sublinho: nós queremos isso, destaco: nós queremos isso, repito o verbo ``querer'' várias vezes para fixar em mentes de meus estudantes que antes de mais nada a criação da matemática tem dois componentes básicos; o psicológico: eu quero algo, e social: nós aceitamos que usaremos certos conceitos, nomes, procedimentos. Repito de novo e de novo:

no começoeu quero, depoisnós aceitamos;
 eu quero,  nós aceitamos.

Mas sejam quais forem o desejo e o consenso, no início não há tal função mágica em vista. Então nós nos aproximamos ao problema de uma outra direção: tentamos construir uma função que transforma a adição em multiplicação; se ela for invertível, mais tarde poderemos reverter o processo.

Porisso quero que a função seja estritamente crescente. (Bem, poderia aceitar uma função estritamente decrescente. E porquê evitar funções que não são monótonas? Tente esboçar um gráfico de função que seria definida no intervalo unitário, com valores nele mesmo, invertível mas nem crescente nem decrescente! Não tem jeito, ela vai ser bem chatinha, você não acha?) Não há muito espaço para fantasiar, estamos obrigados de seguir o caminho costumário de ampliação consecutiva de domínio da função exponencial: comece com os naturais, passe aos inteiros, depois aos racionais, no final entre em mentirinhas de costume quando chegar aos reais. A cada passo verifique que o que está sendo construido preserva tudo que foi feito antes e obedece nossas duas exigências:

  1. se calculamos o valor para soma de dois argumentos, temos o produto de valores obtidos para aqueles argumentos:
    • para números reais  s , t  vale  f(s + t) = f(s) · f(t) 
  2. para o argumento maior tem-se o valor maior:
    • se  s < t  então  f(s) < f(t) 
Agora a estória de  a 0  chega ao final rápido e feliz. Usamos a definição inicial:
Para qualquer número real  a > 1   ponho
2 = a · a ,
e para qualquer k > 1 natural ponho indutivamente
k+1 = a k  · a .
Confiro que as exigências 1. e 2. ficam de pé. Noto que se eu admitisse  k = 1  então a condição 1. e a lei de cancelamento trariam o resultado  a 1 = a.  Incorporo esta condição na definição e repito o raciocínio para  k = 0 . Aqui a comparação de 1 = a 0 · a  com a = 1 · a  me indica que devo aceitar  a 0 = 1 .

A parte mais difícil desta estória é de convencer os estudantes que não provei coisa alguma, que apenas a minha insistência de perseguir um certo objetivo afunilaram as possíveis escolhas, forçando a aceitação de uma única definição que é viável.


começo

3. O número 0 é ímpar?

Eles vêm a Universidade com todas essas certezas … Mas nós queremos que eles se tornem os matemáticos. Eu sei que o macaco come bananas mas poderia acontecer que bananas comem o macaco? Caro Calouro, não há ofensa alguma nesta pergunta, isso não é um ataque contra as suas convicções pessoais. Apenas explique porquê algo é ou não é assim.

Uma pergunta direta sobre o número zero traz um eficiente tratamento de choque a minhas turmas. ``Qual das opções é verdadeira'' pegunto aos estudantes,

(1) zero é ímpar
(2) zero é par
(3) para zero a questão não tem sentido.
Em geral o voto é dividido entre as duas últimas escolhas e a turma espera ansiosamente o veredito que estabelecerá a Verdade. ``A resposta é'' anuncio, esticando as palavras tanto quanto for possível ``que todas as possibilidades são corretas.''

Claramente, por um momento tratam isso como uma piada e pode levar mais de uma hora antes que eles concordem que quiçá na matemática não se trate de fatos e números mas de caminhos que ligam ou não ligam os fatos.

É uma delicada questão como começar e tenho que perguntar: ``o que é um número par?''. Inevitavelmente virá uma resposta de alguém: ``um número divisível por 2''. Eis o momento para a próxima pergunta: ``1/7 é divisível por 2? E que tal log 3 10?'' Logo percebemos que o problema tange os números inteiros - ou talvez os números naturais. Chegando a esta marca, torna-se mais fácil de passar à linguagem técnica. Assumimos que os números naturais começam com 1 - como colocam isso até hoje vários livros de Cálculo - e aceitamos que ``par'' é um múltiplo natural de 2; os demais números do conjunto vão na cesta dos ``ímpares''. Desse modo o zero fica fora do quadro, do mesmo modo como 1/7, e a terceira escolha torna-se a vencedora.

E se incluíssemos 0 entre os números naturais, ele seria forçado de juntar-se aos números pares? Não necessáriamente, os raciocínios lógicos podem apoiar ambos os pontos de vista. De onde vem o conceito de ``paridade''? De acoplamento em grupos de dois em dois? Talvez sim. Então pensemos em crianças de uma creche. Vão passear em pares. Ninguém está passeando? Pois bem, não há pares. As crianças agrupadas em pares e ninguém fica fora? O número de crianças ganha o atributo de ser o número par.

É algo comum na língua de dia-a-dia que alguma característica torna-se uma etiqueta da coleção. Lembre-se de encontro de ruas que ganha o nome de um balão por causa da forma arredondada do canteiro no centro ou de bóias-frias que herdaram o seu nome da sua comida. Do modo parecido 2,4 etc. viram ``números pares''. E o que não cabe nesta coleção acaba indo para o ``resto'' ímpar, resultando na opção (1).

Depois vem o momento quando decidimos de aperfeiçoar as nossas ferramentas. Poderiamos começar desde logo com todos os números inteiros. E a ``divisibilidade por 2'' seria estabelecida olhando se o resto da divisão é 0 ou 1. Portanto podemos igualmente bem escolher a opção (2). Só um momento, isto é de fato ``igualmente bom'' ou talvez seja ``bem melhor''? Existe algum critério razoável para ajudar com a decisão qual das possíveis e formalmente aceitáveis definições deve vencer? Sem dúvida, alguém da turma finalmente se lembrará de um outro conceito adormecido no limbo: a utilidade. O uso. Não estamos se encontrando para brincar, a idéia é de formar as ferramentas. Se o desenho for mais simples o futuro manuseio será mais fácil. ``Não, o nosso professor da escola nunca falou sobre isso.''

Certo. Mas porque não falou? E se você ensinasse um dia na escola de segundo grau, você acharia que vale a pena passar essas idéias aos seus alunos?

Os estudantes hesitam. Ótimo. Este momento de hesitação é um bom começo.


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