Caros Calouros

No nosso primeiro encontro diz que queria saber quem são vocês e pedi que respondam às perguntas desse questionário anônimo:
Fpolis, 1/III/01
Perguntas
  1. Na escola você teve encontro com geometria, álgebra, probabilidade… Você consegue citar nomes de três outras áreas de matemática?
  2. Dê três nomes de grandes matemáticos do passado.
  3. Dê três nomes de grandes matemáticos da atualidade.
  4. Dê três nomes de grandes atores da atualidade.
  5. Em qual destas ciências a matemática não tem aplicações: biologia, antropologia, geografia, biblioteconomia?
  6. Como você estima o salário inicial de um matemático com graduação em um bom colégio particular? Na Escola Técnica Federal? No Colégio de Aplicação?
  7. Certamente você conhece famosos cantores, esportistas ou atores negros. Você acredita que há matemáticos negros da classe mundial?
  8. Você acha que mulheres contribuiram com muito importantes resultados de pesquisa à matemática mundial? Em qual área?
  9. Na sua opinião, quantas pessoas habitaram a cidade de Roma nos tempos do Jesus Christo? E qual podia ser a população da China nesse período?
  10. Qual e a sua estimativa do custo médio de ensino anual na UFSC nos cursos tais como matemática (que não mantenham os caros laboratórios)?
Obrigado por suas respostas – e gostaria de dar um retorno desse seu trabalho. Bem, aquela estória que gostaria de saber quem são vocês não era bem assim. A verdade é um pouco diferente. Acontece que cada vez que encontro uma turma de calouros levo um misto de um choque e um susto. “Não é possível… não sabem disso, não sabem daquilo, nunca ouviram falar de outro…” Decidi que esta vez ia virar o jogo. Para que eu vou levar o susto, que se asuste quem deve mesmo! Vou por um espelho na frente desses jovens e que eles tirem conclusões disso que aparece na frente deles.

São raríssimos os casos de pessoas cujas respostas indicam que sabem o que estão fazendo no curso de matemática. É inocência? Irresponsabilidade? Pouco importa o nome, o que vale é o fato: as pessoas decidem passar a vida inteira, uns 40 anos entre estudos e o trabalho, na profissão sobre qual não sabem de que se trata. Não conhecem sequer os nomes de áreas dela ou de cientistas de destaque (as respostas que jogam: funções ou matrizes como área de matemática – ou dão como famosos matemáticos nomes ligados com algum teorema estudado na escola apenas tornam tragicamente evidente como estão perdidas e despreparadas). Se você pretende passar uma semana em alguma cidade do litoral, você faz pesquisas sobre os preços e hoteis, sobre limpeza e segurança das praias . Mesmo em pequenos projetos, nem que seja a compra de uma escrivaninha, você considera uma série de fatores, pergunta, testa... Agora, aparentemente as vidas valem muito menos, pois sem ter a mínima noção de que se trata, sem ter condições de saber se vão gostar disso e se têm disposição para cumprir as tarefas necessárias no meio de treinamento, as pessoas lançam-se para estudar a matemática. As consequências são fáceis de prever – mas quem pagará a conta desse semestre queimado? Ou será que continuaremos na doce ignorância sobre os custos de um semestre de curso na UFSC?

Já mencionei em aulas a palavra: “elite”. Gostem ou não, vocês fazem parte da elite desta nação. A maioria de pessoas encara isso como um privilégio, não ligado de modo algum com deveres… É aqui que está a maior diferença entre o Brasil e o tal de “primeiro mundo”: lá em maioria dos casos de jovens de elites a escolha do caminho e bem repensada, ponderada e adulta.

Respostas às perguntas do questionário? Pode ir procurando, faz bem para saúde aprender buscar as informações. Mas enquanto você não souber os dados básicos sobre os custos e salários, sobre usos e perspectivas nesta profissão você não deve se pronunciar sobre esses temas, seja no bate-papo do barzinho, seja em discussões mais sérias.

Sobre as perguntas 7 e 8. Não é para conferir se há no Brasil racismo ou machismo. Não preciso aqui questionários – é suficiente cruzar os dados sobre a proporção de negros no Brasil com os dados sobre o número de professores e estudantes negros na UFSC. Ou sobre a proporção de mulheres na sociedade e o número de diretoras de centros, reitoras e outras mulheres destacadas na mesma instituição. O resto é fumaça e conversa para boi dormir.
A pergunta e para conferir se usando o anonimato da resposta, sem preocupação de responsabilidade criminal ou social, há pessoas desta secção de elite que revelam esse câncer do seu caráter. Bem, há. Por volta de 5% da turma admite e cultiva o seu preconceito. Afinal, nada de surpresa, é a sociedade que há 5 ou 6 gerações era escravista. Quanto a aquele engraçadinho que afirma (em resposta 8) que as mulheres contribuiram “na área de serviço doméstico” acharia isso muito divertido se não fosse o país onde um cidadão mata a namorada com 2 tiros e recusa-se aparecer na frente do delegado pois está “muito abalado emocionalmente”. Também engraçadinho.
Por sinal, esse autor é a mesma pessoa que acha que a matemática não tem aplicações na biologia e que nas escolas mencionadas em pergunta 6 ganha-se “uma micharia”. Não sei quantos reais é uma mixaria mas sei que esse salário não faria feio em escolas da metade dos países europeus.

E o que faz no questionário a pergunta 9? Antes de mais nada: China contribuiu com desenvolvimento da matemática, a Roma nem tanto assim. E ambos eram os impérios numerosos e poderosos. Portanto o tamanho da população deve ser importante para que a matemática possa ser desenvolvida mas não é uma garantia automática disso. E quais são os dados numéricos? Procure, ache. Dicas: na China nesse período houve o primeiro conhecido censo do mundo (descontando o da Arca de Noé) e sobre a Roma deve ter alguma indicação na famosa frase sobre “toda a riqueza da Sicília que desceu pelos esgotos da (cidade de) Roma”.

Então, sem surpresas? Isso mesmo. Pode-se esperar que as turmas seguirão a rotina traçada pelas turmas do passado? Não necessariamente. Aqui entra aquela estória do “livre arbítrio”. Há todos os riscos que isso acabe mal – mas quem determina o futuro não é a média das turmas do passado mas o Teu empenho pessoal em todos os finais de semana, no horário de todas (muito educativas) novelas da Globo; a Tua disposição de entrar na biblioteca e abrir os livros que nenhum professor mandou abrir; a Tua escolha do grupo de trabalho; o Teu cuidado na hora de repensar o material da aula. E pode crer que vale a pena. A satisfação de ter compreendido algo novo, a auto-estima, a percepção que as peças começam encaixar-se no cérebro são acessíveis para você – e têm valor que em nossas vidas tem mais importância do que moedas.

Por obrigação profissional, pela minha formação e também por conhecer várias histórias de sucesso, vou torcer por você com simpatia e esperança. Se alguns anos daqui você estará entre os que trarão a consecutiva nota A do provão, uma parte da Tua glória ficará aqui, no meu ambiente do trabalho.